Major William Martin

Operação Carne Picada – Mincemeat – O Homem que nunca Existiu

Após o êxito na batalha no Norte de África, o próximo alvo estratégico dos Aliados era a Sicília. Localizada no meio do Mediterrâneo, tal ilha era ponto intermédio entre o Norte de África e a Europa ocupada. O terreno montanhoso de Sicília proporcionava vantagens aos defensores. O segredo quanto aos pontos de desembarque deveria ser absoluto, por parte dos aliados. Mas essa medida não sereia suficiente, pois os defensores da ilha por certo preveriam esses possíveis pontos de desembarque, reforçando-os de modo que derrotariam as tropas invasoras.

A solução veio da ideia de dois oficiais britânicos, Ewen Montagu e sir Archibald Cholmondley. Archibald foi o primeiro a sugerir que forjassem documentos dos Aliados e os colocassem em posse de um corpo de algum soldado morto e em seguida fizesse com que o corpo caísse em mãos alemãs.

A estratégia era simplíssima, difícil seria enganar os alemães. Antes de qualquer coisa, seria preciso evitar que os alemães desconfiassem dos enormes preparativos para invasão da Sicília na Operação Husky. E também, o plano não poderia conter nenhuma falha visível aos serviços secretos alemães, o que poderia desencadear reforços nas defesas na ilha Sicília.

Montagu acreditava que o mais difícil era convencer os responsáveis Aliados de que o plano teria êxito, que enganar os alemães.

O plano era complexo. Como entregar o corpo aos alemães? Inicialmente, considerou-se soltar o corpo num paraquedas parcialmente destruído. Porém, era extremamente raro um tripulante de um avião carregar documentos secretos. Por certo isso não seria convincente.  O corpo não poderia chegar por correio, pois militares dos correios não tinha permissão para viajar em território inimigo. E uma autópsia ao corpo revelaria que este havia padecido muito antes de atingir o território inimigo. Por outro lado, os alemães não estranhariam o fato de um corpo a flutuar no mar houvesse morrido muito antes de ser resgatado. Desta forma, esta solução eliminaria o problema do corpo transportar documentos ultrassecretos em território inimigo.

A equipe de Montagu decidiu que o corpo seria um carteiro aliado morto quando seu avião caiu e consequentemente seu corpo foi carregado à costa.  Os serviços secretos empregaram um submarino para que assim o corpo fosse posto o mais próximo possível da costa, sem serem detectados. Vista a estreita relação entre o governo espanhol e alemão, como a grande presença dos serviços secretos militares alemães (Abwehr) em território espanhol, a costa espanhola seria uma boa escolha.

E como encontrar um corpo que se se encaixasse aos objetivos? Com a idade, aparência e com a causa da morte adequada ao plano traçado? A procura por um corpo com as características desejadas deveria ser feita com extremo cuidado, fornecendo o mínimo de informação sobre a futura utilização do mesmo, para evitar a descoberta do plano pelos serviços secretos alemães.

Preparando a Carne

 Major William Martin
Major William Martin

Após muita procura infrutíferas por um corpo com as características desejáveis, a ponto de se pensar na desistência, a equipe responsável pela operação teve acesso a um homem com 34 anos de idade que havia falecido devido a uma pneumonia. E ainda, os pulmões do falecido estavam cheios de fluidos, o que reforçaria a idéia de que estivesse à deriva no mar durante alguns dias.

O médico patologista forense Sir Bernard Spillsbury, afirmou a Montagu que o fluído presente nos pulmões do morto não divergia quase em nada do fluído esperado nos pulmões de alguém que permaneceu flutuando no mar durante algum tempo. Spillsbury também disse: “Você não tem nada a temer de um exame post-mortem espanhol; para detectar que este homem não morreu após seu avião cair no mar seria preciso um patologista com a minha experiência, e não há nenhum na Espanha”.

Montagu contatou discretamente a família do morto, garantindo que o corpo seria usado para uma causa patriótica e que eventualmente receberia uma sepultura digna, apesar de que com outro nome. A família consentiu desde que a verdadeira identidade do homem morto jamais fosse divulgada. Então, a equipe de Montagu concluiu que seria possível por a operação em prática. A operação recebeu o nome de Mincemeat (Carne Picada), celebrando o típico humor negro dos britânicos.

A próxima etapa se concentrou em criar uma nova identidade ao corpo. De início, cogitaram que deveria ser um oficial do exército, no entanto, o processo burocrático para a identificação de baixas era muito complexo, e isso também poderia causar vazamento de informação. Ser um mensageiro da marinha seria complicado, devido à grande dificuldade em arranjar um uniforme. Decidiu-se que o corpo pertenceria aos Royal Marines (fuzileiros navais britânicos). No entanto, existia mais um problema relacionado com o fato de que os Royal Marines eram, mesmo em tempo de guerra, um grupo muito pequeno e seus membros eram muito próximos um dos outros. Assim, resolveu que o corpo seria de um Capitão (atuando como Major) chamado William Martin, nome comum entre os soldados dessa unidade.

Com um nome e um cargo, a equipe de Montagu teria de fabricar melhormente a identidade do Major Martin, tornando-o uma pessoa real. Para isso, atribuíram-lhe uma noiva, com fotografias e cartas amorosas, arranjadas pelas secretárias do departamento de Montagu. Junto ao Major iria uma carta do pai, contas a pagar; chaves, fósforos, moedas, bilhetes de teatro e muitos outros objetos normalmente presentes nos bolsos de um homem. As datas dos bilhetes de teatro, das contas e das cartas foram diligentemente coordenadas com a suposta partida de Inglaterra. Finalmente, a equipe encontrou uma pessoa viva cuja aparência era razoavelmente semelhante à do morto, tendo esta sido fotografada para a criação de uma carteira de identidade falsa. Para reforçar o traço descuidado da personalidade de Martin, a carteira de identidade encontrava-se uma observação: “em lugar do Nº09650 perdido”. Curiosamente, o número original era o mesmo da carteira de identidade de Montagu.

Os Documentos

Enquanto a operação não era posta em prática, o corpo foi preservado numa câmara frigorífica. Veio, então, a fase da criação dos falsos documentos ultrassecretos que seriam transportados na mala do Major Martin. O Comitê XX decidiu que para convencer os alemães de que a invasão aliada não aconteceria na ilha Sicília, os documentos teriam que afirmar que os Aliados invadiriam primeiro a Sardenha, estabelecendo aí um dos dois pontos de partida para o ataque a Sicília. Incluiu-se também os planos para o desembarque das tropas aliadas nos Balcãs e nas proximidades de Kalamata, na Grécia.

Archibaldnye
General Sir Archibald Nye

Os planos para a falsa invasão foram contados numa carta pessoal de um alto oficial para outro alto oficial aliado. Montagu decidiu que a carta devia ser escrita pelo General Sir Archibald Nye, subchefe do pessoal do Estado-maior Imperial, ao General Sir Harold Alexander, o comandante britânico no Norte de África sob o comando do General Dwight D. Eisenhower. Na carta, Nye explicava porque o pedido de Eisenhower para a operação de cobertura centrada nas ilhas gregas foi negado. Essa operação de cobertura fora planificada para ser lançado a partir do Egito pelo Marechal de Campo Sir Henry Wilson, o comandante chefe no Médio Oriente.

A carta seria usada para dois objetivos. Um deles era sugerir que duas operações no Mediterrâneo seriam lançadas (uma a Leste e outra a Oeste). Também serviria para identificar Sicília como a operação de cobertura de uma verdadeira operação a Oeste. Isso fazia com que a Sardenha fosse o alvo a Oeste e o território continental grego e os Bálcãs fossem o alvo a Leste.

Identidade do Major
Identidade do Major

Para confirmar a carta de Nye, o Major Martin também portava uma segunda carta do Lord Louis Mountbatten, chefe das Operações Combinadas, para o Almirante Cunningham, Comandante chefe das Operações Navais no Mediterrâneo. A carta referia o objetivo da viagem do Major Martin, no papel de um especialista nas operações anfíbias emprestado por Mountbatten para o planejamento das operações no Mediterrâneo. Para apresentar Martin, Mountbatten menciona que Martin tinha tido sucesso no ataque a Dieppe, apesar do fracasso dos oficiais encarregues das operações terrestres. Seria a primeira vez que as forças britânicas admitiam que o ataque a Dieppe tivesse sido tudo menos um sucesso.

A carta de Mountbatten apresentava também um comentário extra sobre o fato das sardinhas (sardines) serem racionadas na Inglaterra, correspondendo a um jogo de palavras para a ilha Sardenha (em inglês, Sardine). Tal jogo de palavras era uma isca que, segundo Montagu, os alemães não resistiriam morder.

A Execução do Plano

O Major Martin deixou a Inglaterra pela última vez no dia 19 de Abril de 1943, num contentor de latão com gelo seco a bordo do submarino HMS Seraph comandado pelo Tenente Comandante N. A. Jewell. Dias depois, um avião da RAF atacou o Seraph por engano, quase terminando a operação desastrosamente. Antes do amanhecer do dia 30 de Abril, o submarino emergiu distando a cerca de uma milha da costa espanhola próximo de Huelva. A tripulação do submarino trouxe o contentor onde se encontrava o Major Martin para a coberta, e em seguida Jewel ordenou que estes retornassem para o interior do submarino, permanecendo apenas os altos oficiais na coberta. Até esse momento, apenas Jewel , sabia o que estava no interior do contentor. Rapidamente explicou aos oficiais o objetivo da operação, e em seguida prepararam o corpo para o lançamento. Colocaram um colete salva-vidas e a mala com os documentos presa ao corpo, rezaram uma oração do Serviço de Enterros Navais e lançaram o corpo n’água. O próprio movimento do submarino ajudou o corpo se deslocar em direção à costa. Poucas horas depois, um barco pesqueiro resgatou e transportou o cadáver para o porto. O agente da inteligência alemã daquela zona fez o resto.

Após atraso diplomático e burocrático, o governo espanhol entregou a mala, aparentemente por abrir, à embaixada inglesa. Assim que os documentos chegaram a Londres foram examinados microscopicamente, o que revelou que os papéis haviam sido manuseados e, presumivelmente, fotocopiados. Quanto ao corpo, as previsões de Spillsbury confirmaram-se sobre os testes post-mortem realizados em Espanha. Quando se teve a certeza de que os documentos estavam sendo analisados pelos serviços secretos alemães, foi dito ao primeiro-ministro Winston Churchill que a carne picada foi toda comida. O Major Martin foi enterrado poucos dias depois em Huelva com todas as honras militares e rodeadas de flores enviadas pela sua suposta noiva e família. A edição de 4 de Junho da The Times estampava a morte de Martin na lista de baixas. A Abwehr teve em conta todos estes aspectos.

Os serviços secretos alemães deram créditos aos documentos. No dia 12 de Maio de 1943, os documentos chegaram às mãos de Adolf Hitler, e este ordenou prioridade às operações em Sardenha e no Peloponeso (Grécia) e o reforço das defesas em Córsega e Sardenha. Hitler enviou, ainda, uma brigada adicional das Waffen SS para a Sardenha, o Marechal de Campo Erwin Rommel para Atenas, uma divisão Panzer vinda de França e duas outras vindas da Rússia para a Grécia, algo que piorou a situação nessas frentes nomeadamente na frente russa. Simultaneamente, os alemães organizavam-se para o confronto em Kursk.

Ao invadir Sicília as Forças Aliadas se depararam com tropas italianas e alemãs praticamente desprevenidas. Os Aliados fizeram desembarque na costa Sul, sendo que as defesas da ilha estavam em maior número na costa Norte, virada para a ilha de Sardenha. Grande parte das divisões italianas ficou arrasada imediatamente. Os alemães, sob o comando do Marechal de Campo Albert Kesselring, iniciaram uma resistência determinada, mas se retiraram, em seguida, para Messina. No dia 17 de Agosto de 1943 a Sicília havia sido tomada pelo 7º exército do General George Patton e pelo 8º exército do Marechal de Campo Bernard Montgomery, provando que a Operação Mincemeat havia sido um estrondoso sucesso.

Túmulo do "Major" - Glyndwr Michael
Túmulo do “Major” – Glyndwr Michael

Após várias décadas da operação, nasceram especulações sobre a verdadeira identidade do homem que nunca foi. O historiador britânico Roger Morgan, depois de 16 anos de pesquisas, publicou um livro onde afirma que o corpo do homem usado para a Operação Mincemeat correspondia a Glyndwr Michael, um desabonado, filho de pais iletrados da cidade de Welsh e que não fez nada de positivo durante sua vida. Mas, as especulações não pararam, chegando-se a afirmar que tal homem tinha cometido suicídio com veneno para ratos ou que tinha morrido com uma doença hepática. Especulou-se, igualmente, que o corpo que se encontra no cemitério de Huelva como sendo de William Martin é na verdade de um marinheiro que morreu após o submarino britânico HMS Dasher onde se encontrava ter sido atacado por engano por forças amigas a 27 de Março de 1973, indicando que o corpo do suposto Major Martin fora enviado para Inglaterra.

 

Operação Carne Picada no Cinema e na Literatura

A Operação Carne Picada, resultou no livro: O Homem que Nunca Existiu, de Ewen Montagu, de 1978.

Tivemos ainda o Documentário:

 

Sobre Andre Almeida

Ex-militar do exército, psicólogo e desenvolvedor na área de TI.Sou um entusiasta acerca da Segunda Guerra Mundial e criei o site em 2008, sob a expectativa de ilustrar que todo evento humano possui algo a ser refletido e aprendido.

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