Em Macaé, no coração da Região dos Lagos do Rio de Janeiro, a vida de Jorge dos Santos é um testemunho vivo de coragem, resistência e, agora, de uma batalha que transcende os campos de guerra. Aos 101 anos, esse ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, que enfrentou o frio cortante da Itália e os horrores do conflito ao lado da Força Expedicionária Brasileira, trava hoje um combate diferente: provar que ainda respira, que seu coração ainda pulsa, contra um sistema que o declarou morto. A história de Jorge não é apenas um grito por justiça, mas um apelo silencioso por dignidade, perdido entre papéis burocráticos e erros que o condenaram ao limbo.
Ele era apenas um jovem de 21 anos, natural de Aracaju, quando cruzou o Atlântico em 1944 para lutar contra as forças nazistas. Nos campos gelados da Itália, onde o vento parecia cortar a alma, Jorge carregava mais do que armas: levava a esperança de um Brasil que se erguia para marcar seu nome na história. “Ajudei muita gente, salvei muita gente”, diz ele, com a voz rouca e os olhos marejados, como se as lembranças da guerra ainda dançassem diante dele. De volta ao país, construiu uma vida simples ao lado da esposa, Rita, mas nunca imaginou que, quase oito décadas depois, enfrentaria um inimigo tão implacável quanto os canhões inimigos: a burocracia.
Tudo começou em 2019, quando uma certidão de óbito registrada em São Paulo, a milhares de quilômetros de sua realidade, decretou sua morte aos 95 anos. No documento, ele aparece como solteiro e pai de filhos que nunca teve, com um CPF que não é o seu. “Eu nunca fui a São Paulo”, afirma Jorge, com a certeza de quem sabe exatamente onde pisou cada passo de sua longa jornada. O erro, porém, custou caro: sua aposentadoria, única fonte de sustento para ele e Rita, foi suspensa. Sem o benefício, o casal sobrevive graças à solidariedade de vizinhos e sobrinhos, enquanto a saúde frágil de ambos clama por remédios e cuidados que não podem pagar.
A luta para corrigir esse equívoco é tão exaustiva quanto heroica. Em 2024, Jorge enfrentou suas limitações físicas e auditivas para fazer a prova de vida na Receita Federal, um esforço que, para muitos, seria apenas uma formalidade. Mas o peso da certidão falsa ainda o prende. Para reaver seus direitos, ele precisa de sua certidão de nascimento, guardada em Aracaju, um desafio quase intransponível para quem não tem acesso à internet nem forças para cruzar o país. “Sem esse documento, é impossível”, lamenta o advogado Júlio Cesar Gonçalves, que abraçou a causa desse veterano quase centenário.
Jorge é um dos últimos 72 ex-combatentes da FEB ainda vivos, um símbolo de uma geração que arriscou tudo por um ideal maior. Enquanto relembra os dias de guerra, sua memória dança entre o orgulho e a dor, mas é no presente que ele enfrenta sua batalha mais solitária. A esposa, Rita, também debilitada, é sua companheira nessa trincheira invisível, onde o inimigo não tem rosto, apenas carimbos e assinaturas erradas. A cada dia sem solução, a sensação é de que o mundo que ele ajudou a salvar virou as costas para sua existência.
A história de Jorge dos Santos não é só sobre um erro administrativo; é sobre o esquecimento de um herói que, mesmo aos 101 anos, se recusa a baixar a guarda. Ele não pede medalhas ou holofotes, apenas o direito de ser reconhecido como vivo, de ter a dignidade que conquistou com suor e sangue. Em Macaé, entre as ruas simples que testemunham sua luta, ecoa um questionamento que ninguém parece querer responder: até quando um soldado precisa provar que venceu a morte?