Caros leitores, imagine uma cena quase cinematográfica: num canto discreto do Palácio Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, três pastas repousam sobre uma mesa, como relíquias de um passado que o Brasil insiste em tratar com descaso. Eram os documentos – ou parte deles – solicitados por uma reportagem ao Arquivo Histórico do Exército, com o objetivo de resgatar a trajetória dos quatro generais que lideraram a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial. Homens que, entre 1944 e 1945, comandaram 25 mil brasileiros contra o horror nazifascista nos campos gelados da Itália.
Ali estavam os registros de João Batista Mascarenhas de Moraes, o chefe maior da 1.ª Divisão de Infantaria Expedicionária, e de Euclides Zenóbio da Costa, que guiou a infantaria divisionária com mão firme. Mas, para surpresa de qualquer um que preze a memória nacional, faltavam as pastas de Oswaldo Cordeiro de Farias e Olympio Falconière da Cunha – dois pilares daquela epopeia que, 75 anos depois, o Exército parece incapaz de honrar como deveria.
Sobre Cordeiro de Farias, o funcionário do arquivo arriscou uma explicação quase burocrática: “Devem estar no Forte de Copacabana”. Faz sentido, talvez. Afinal, o general, que na juventude foi tenente rebelde, teve sua vida marcada pelo levante de 1922, quando, ainda na Escola de Aviação do Exército, acabou preso após a derrota da revolta contra Artur Bernardes. Já os papéis de Falconière, que liderou o 3.º Escalão da FEB e fiscalizou as tropas na Itália como inspetor-geral? Um vazio. Ninguém sabe onde foram parar. Num país que se gaba de reverenciar os “pracinhas”, o sumiço dos documentos de um marechal soa como ironia cruel.

Vamos aos fatos, porque eles falam mais que as justificativas frágeis. Os registros de Mascarenhas, por exemplo, contam uma história de lealdade ferrenha à ordem. Em 5 de julho de 1922, então capitão de artilharia, ele marchou com sua unidade para sufocar os revoltosos do Forte de Copacabana. Ganhou elogios pomposos do comando: “rigoroso cumprimento do dever” e “dedicação à legalidade”. Do outro lado da trincheira, estava Cordeiro de Farias, o jovem tenente que sonhava derrubar o que chamava de oligarquia corrupta, ao lado de figuras como Hermes da Fonseca, ídolo dos rebeldes de farda.
Dois anos depois, em 1924, o destino os colocou novamente em lados opostos. Mascarenhas, já major, foi enviado a São Paulo para esmagar a revolta liderada por Isidoro Dias Lopes. De seu posto na Vila Matilde, comandou o bombardeio que castigou a cidade até o silêncio dos rebeldes. Entre eles, quem estava? Falconière, outro futuro general da FEB, que marchou com os sublevados até o interior paulista e, após a derrota, exilou-se no Paraguai. Enquanto isso, Cordeiro de Farias rumava ao Sul, juntando-se à Coluna Prestes. Só em 1930, com a vitória da revolução, esses caminhos tortuosos convergiriam num mesmo Exército.
E o que sobrou disso tudo no Arquivo Histórico? Pouco. Os feitos dos legalistas, como Mascarenhas, estão lá, registrados em detalhes. Mas as notas sobre os rebeldes – os julgamentos, as punições, as visões de seus superiores – evaporaram. Em 1982, uma busca pelos papéis de Mascarenhas já havia causado confusão: primeiro, nada; depois, milagrosamente, surgiram cópias. Quanto a Falconière e Cordeiro, o silêncio persiste.

Por que isso importa? Porque esses homens não foram apenas soldados de uma guerra distante. Eles moldaram o Exército que, entre os anos 1920 e 1960, mergulhou de cabeça em revoltas, golpes e manifestos – uma instituição que, para o bem ou para o mal, ajudou a desenhar a República que temos hoje. Perdê-los no esquecimento é abrir mão de entender quem somos.
E o que faz o governo atual, tão pródigo em discursos patrióticos? Nada além de encenar homenagens vazias aos veteranos da FEB, com os olhos fixos nas urnas de 2022. Enquanto isso, os papéis de Falconière seguem perdidos, e os de Cordeiro, se estão mesmo no Forte de Copacabana, não voltam ao arquivo central. O Planalto prefere gastar energia com propaganda barata e bravatas nas redes sociais – um circo que transforma a história em caricatura e os heróis em bonecos de um conto infantil.
Os pracinhas que tombaram em Montese, os tanques que rolaram pelos Apeninos, os generais que enfrentaram escolhas impossíveis – tudo isso merece mais que um governo de pose e um Exército que não acha seus próprios documentos. A memória, quando negligenciada, vira arma dos que preferem a mentira à verdade. E disso, francamente, o Brasil já tem demais.