Georges Schteinberg – O Holocausto, a perseguição e o posterior assassinato sistemático e em escala industrial, perpetrado pelos seguidores do regime nazista contra as populações judaicas da Europa nos anos da Segunda Guerra Mundial, é algo conhecido por todos como um dos mais terríveis e vergonhosos episódios da história da humanidade.
Pouco difundido, entretanto, é o fato de que durante este mesmo conflito, outros milhares de judeus, homens e mulheres, optaram por pegar em armas para lutar contra a dominação nazista, quer com as forças clandestinas de Resistência, quer nos exércitos regulares Aliados.
No Brasil, nos anos de 1940 viveram aqui dezenas de milhares de indivíduos dessa origem e apenas 25 estavam entre os 25.000 integrantes da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária brasileira no Front Italiano.
Tal número, contudo, mesmo que pequeno em quantidade, pode ser tomado como bastante significativo quando comparado a porcentagem de judeus em relação à população brasileira da época, na ordem de 40 milhões de habitantes.
Na verdade, como relata o autor Israel Blajberg, no livro “Soldados que vieram de longe”, essa participação podia ter sido ainda maior, não fosse grande parte de a comunidade ser ainda constituída por imigrantes estrangeiros e portanto dispensados do Serviço Militar.
Sem outra opção, muitos desses imigrantes tomaram a direção das ilhas britânicas, onde as Forças Armadas Reais e os Exércitos Aliados no exílio estavam ávidos por novos voluntários em suas fileiras.
Georges Schteinberg, sua origem
Um desses heróis desconhecidos foi George Schteinberg, condecorado post-mortem com a Croix de Guerre avec Palme, uma das principais condecorações francesas da Segunda Guerra Mundial.
O pai de Georges, Moses Schteinberg, saiu da Rússia após o final da Grande Guerra, radicando-se em Paris, onde adotou o nome do Mourice e tornou-se sócio de uma empresa de ônibus.
Casou-se com a francesa Ida Chafro, com quem teve dois filhos.
Georges foi o mais velho, nasceu no 12.º arrondissement da capital francesa, junto a margem direita do Sena, aos 27 de dezembro de 1922, seguido por Octave, sete anos mais novo.
Em 1930, a própria esposa de Mourice delatou às autoridades as atividades do marido dentro do Partido Comunista local, o que levou a sua detenção.
Um ano depois, quando saiu da prisão, acabou expulso da França; ao mesmo tempo, descobriu que sua ex-esposa e familiares haviam se apossado de todos seus bens.
Diante da situação e sem perspectivas, sequestrou seus dois filhos e fugiu com eles para a Bélgica, onde casou novamente com a romena Rosalia Izsak.
Em 1932, a família juntou-se a um dos vários grupos de imigrantes judeus que vieram ao Brasil e à Argentina sob os auspícios da Jewish Colonization Association.
Organização criada pelo milionário alemão Barão Moritz von Hirsch e que tinha como objetivo comprar terras, principalmente nesses dois países, visando o assentamento de imigrantes judeus do Leste Europeu.
Georges Schteinberg e sua vida no Brasil
É um tanto difícil falar das atividades de George Schteinberg no Brasil, mas ele viveu no Rio de Janeiro e em Esmeralda, estado de Minas Gerais, onde nasceram seus outros irmãos: Lazaro e os Gêmeos Salomão e Henri.
Bem possível ainda é sua permanência, junto ao irmão Octave na colônia Barão Hirsch, em Resende, a 190 km do Rio de Janeiro.
O local havia surgido em 1936 para acomodar judeus perseguidos pelos nazistas na Alemanha, mas não houve como os mesmos deixarem a Europa e a colônia acabou habitada por imigrantes judeus já instalados no país.
A família então mudou para a Fazenda da Barra, ainda em Resende; neste período, Georges foi obrigado a abandonar os estudos para ajudar na renda familiar, dando aulas de francês e vendendo os pães e bolos feitos por sua madrasta aos operários que trabalhavam nas obras de construção da nova Escola Militar em Resende (atual Academia Militar das Agulhas Negras).
Ainda na mesma época, começou também a nutrir crescente interesse pelos acontecimentos na Europa, acompanhados sempre através das transmissões do serviço brasileiro da BBC de Londres e ouvidas no rádio de um vizinho norte-americano.
Em junho de 1940, Georges ficou muito impressionado ao escutar na BBC o famoso discurso do General Charles de Gaulle, líder francês no exílio, conclamando todos os franceses a continuar lutando, ao mesmo tempo que chamav
a ao dever todos os franceses espalhados pelo mundo:
“…Oficiais franceses, soldados franceses, marinheiros franceses, onde quer que estejais esforçai-vos por vir ter com os que desejam continuar lutando. Prometo-vos que um dia as nossas forças reunidas, o Exército Francês de elite, o Exército mecanizado terrestre, naval e aéreo, juntamente com os nossos aliados, restituirão a liberdade ao mundo e a grandeza à Pátria.”
Como tantos outros franceses que viviam no Brasil, ele decidiu que era hora de fazer alguma coisa pela nação onde nascera e, sem revelar a ninguém, começou a planejar seu engajamento com os Aliados.
Rumo à Segunda Guerra
Assim, em 1942, sob pretexto de procurar trabalho, viajou a São Paulo e ali se dirigiu ao Comitê da França Livre nesta capital, onde se inscreveu como voluntário para a guerra na aviação.
Não se sabe nada com relação à sua viagem, somente a data que efetivamente ingressou como voluntário nas forças aliadas – dia1º de dezembro de 1942.
Há possibilidade, entretanto, que ele seja o cidadão francês George Steinberg, citado nas memórias de outro voluntário saído do Brasil, o carioca Henry Leonard Temple, que partiu do porto de Santos no paquete “Brittany”, da Royal Mail Lines, em 22 de setembro de 1942, acompanhado por outros quatro voluntários, um deles o citado francês.
Após se unir ao comboio SL 125, o navio deixou Serra Leoa rumo ao porto de Liverpool, mas foi torpedeado pelo submarino alemão U-509, na noite de 29 de outubro de 1942, próximo a Ilha da Madeira.
Os sobreviventes foram resgatados por outro navio e chegaram a Glasgow, na Escócia, no início de novembro.
Apesar da semelhança dos nomes e das datas baterem, nenhum dos familiares contatados afirma ter conhecimento de que Schteinberg esteve em tal naufrágio, sendo isto um mistério a ser desvendado.
Ao chegar a Londres, Georges foi ouvido pela B.B.C., quando teve oportunidade de dirigir algumas palavras à família no Rio.
Além disso, na mesma época, enviou uma carta aos familiares, informando onde estava e explicando sua decisão, da qual reproduzimos um trecho:
“Queridos pais e irmãos, peço perdão por ter embarcado para à Europa sem revelar minha intenção. Não pude fechar meus olhos nem meus ouvidos diante dos acontecimentos aqui na Europa, na França e com os nossos correligionários. Não seria justo alguém que pudesse fazer alguma coisa, ficar de braços cruzados. Não culpem à ninguém se algo acontecer comigo, somente ao destino.”
Como os demais aviadores franceses, seu treinamento certamente foi iniciado no campo de instrução de Camberleye e, muito provavelmente, como atesta uma foto em poder da família, se estendeu ainda pelo Canadá.
Em meados de 1943, depois de findado o treinamento, o Sergeant George Schteinberg foi postado como Wireless Operator (operador de rádio) ao Groupe de Bombardement N°1/20 “Lorraine” das Forces aériennes françaises libres.
Não obstante a denominação um tanto pomposa, a unidade era na verdade somente um dos cinco esquadrões franceses da RAF, com a denominação oficial de 342 (FF) “Lorraine” Squadron, parte do N°2 Group do Bomber Command e equipado com bombardeiros médios bimotores Douglas Boston MkIIIA, versão fabricada para a RAF do aparelho norte-americano A-20C Havoc.
O 342 Sqn, como as demais unidades do N°2 Group, estava envolvido em perigosas operações a luz do dia contra alvos no território francês e nos Países Baixos, particularmente contra as rampas e bases de lançamento das bombas voadoras V-1 no norte da França, bem como a objetivos relacionados à futura invasão da Fortaleza Europeia.
De acordo com o texto da citação de Schteinberg à sua Croix de Guerre, até meados de outubro de 1943, ele já havia participado de cinco surtidas a média altitude e outras três em voo rasante, conhecidas pelos aviadores da RAF como Reich Intruders.
Na tarde de 22 de outubro de 1943, uma sexta-feira, três esquadrões do N.o 2 Group – 88, 107 e 342 Squadrons – foram escalados para uma incursão sobre a Bélgica ocupada, a fim de atingir as instalações de montagem e reparação de motores da Junkers, em Courcelles, na região da Valônia.
A formação, composta por 38 Douglas Boston, ou seja, a quase totalidade das aeronaves disponíveis às três unidades, decolou do campo da RAF em Hartfordbridge, no condado de Hampshire, ao redor das 13:45hs, sob comando do Wing Commander Richard G. England, líder do 107 Sqn, enquanto os treze bombardeiros do 342 Sqn voavam tendo a frente seu comandante, o Wing Commander Henry de Rancourt.
Para tal operação, Schteinberg encontrava-se voando no aparelho “BZ-393” OA-R, um Boston B. Mk III, junto aos demais membros de sua tripulação: F/Of Simon Stoloff (piloto), F/Of Charles Lang (navegador) e Sgt. Julien Allain (metralhador).
Como todos os outros aviões envolvidos, o “BZ-393” levava duas bombas de 500 libras, reguladas para explodir com intervalos de 11 e 25 segundos.
Algo interessante de se citar, é que Schteinberg voou nesta operação sob um nome falso, o de Lasson (provavelmente George Lasson), algo comum entre os tripulantes da RAF de origem judaica.
Tal preocupação não era mera formalidade, pois, caso aprisionados e constatada sua origem, os judeus poderiam ser entregues à Gestapo, a temida polícia política nazista, o que resultaria em fuzilamento sumário ou envio a um campo de trabalho ou extermínio, destino semelhante a maioria dos cerca de 150 mil soldados judeus russos e poloneses prisioneiros dos alemães.
A Convenção de Genebra, que regulamentava o tratamento de prisioneiros de guerra, simplesmente não era respeitada no caso deles.
Expediente semelhante, aliás, era usado por boa parte dos voluntários oriundos de países ocupados, principalmente para proteger seus parentes próximos, que ainda estavam em área dominada pelos nazistas.
Durante o Briefing, as tripulações foram informadas que os bombardeiros deveriam ingressar no continente pela Zelândia, extremo sul do litoral holandês, onde, para evitar ao máximo as áreas conhecidas da Flak (Flugabweherkanone, ou artilharia antiaérea), iniciariam uma navegação de baixo nível sobre o canal entre as ilhas de Walcheren e Schouwen, até atingirem a localidade de Colijnsplaat, na ilha Noord-Beveland, para então pegar a direção sudeste, rumo a seu alvo.
No entanto, por um erro de navegação, supostamente provocada por uma bússola mal aferida, a formação se desviou da rota original, atingindo a costa um pouco mais ao sul, entre Westkapelle e Domburg, a leste da ilha Walcheren.
Percebendo o erro, o W/Cdr England ainda tentou uma correção de curso, mas esta os levou direto para a região de Veere, na mesma ilha, onde encontrava-se atracada uma flotilha de navios semeadores de minas alemães, protegidos por canhões antiaéreos de 20mm, 37mm e 88mm do FlakRegiment 35, que imediatamente abriram fogo quase a queima roupa contra os bimotores que passavam rasante.
Como resultado, em poucos minutos, cinco Boston haviam sido abatidos, incluindo os bombardeiros do W/Cdr England e o “BZ393” do Sgt George Schteinberg. Como voavam a muito baixa altitude, poucos tripulantes tiveram a chance de sobreviver.
De acordo com as anotações do Opetational Record Book do 342 Sqn para esta operação, a aeronave OA-R foi visto sendo atingido por projéteis antiaéreos ao sul de Westkapelle.
Seu motor de estibordo pegou fogo e teria atingido árvores ao tentar aterrar no campo, pegando fogo em seguida.
Investigações posteriores, realizadas por pesquisadores holandeses, dão detalhes mais precisos: Segundo tais investigações, baseadas em depoimentos de testemunhas, o “BZ393” caiu já em chamas numa área desabitada, no interior de uma fazenda próxima à aldeia de Aagtekerke, às margens da estrada para Domburg.
Apesar do choque, Stoloff, o piloto, saiu dos destroços apenas com algumas escoriações, tendo ainda tempo de socorrer o Sgt Julien Allain, que, com as duas pernas decepadas, morreu em seus braços.
Stoloff seria depois aprisionado pelos alemães e enviado à Alemanha. George Schteinberg e Charles Lang, por sua vez, morreram provavelmente na queda ou quem sabe atingidos pelos projéteis alemães.
O corpo de George Schteinberg foi recuperado dos restos da aeronave e enterrado no cemitério de Nooden.
Em 9 de agosto de 1949, no entanto, seus restos, junto aos de Jullien Allain, foram transferidos ao cemitério de guerra francês de Kapelle, em Goes, ainda na Zelândia, onde por quatro décadas sua sepultura foi sinalizada por uma cruz, erro somente corrigido nos anos de 1980, quando esta foi substituída por uma Estrela de David.
A exemplo de seus companheiros mortos, o Sgt Schteinberg foi postumamente agraciado com a Croix de Guerre 1939-1945 avec Palm.
O decreto que a concedeu foi assina pelo General Charles De Gaulle, líder da França Libertada, em 12 de janeiro de 1945.
Georges Schteinberg, a história desse herói quase anônimo somente foi divulgada no 1º de maio 2005, em uma homenagem prestada aos 42 judeus do Brasil que lutaram na Segunda Guerra Mundial, no Grande Templo Israelita do Rio de Janeiro.
Seu nome também figura em placas na Maison de France, sede do Consulado Francês no Rio e no Mausoléu dos Franceses no Cemitério São João Baptista.
Mais recentemente, por iniciativa dos habitantes da pequena Aagtekerke, no município de Veere, foi erguido um monumento em homenagem a memória dos três aviadores ali mortos em 1943.
O Memorial foi construído pelo Conselho da Vila e adotado pelas crianças das duas escolas primárias da localidade, os quais ajudam na sua limpeza e manutenção. A inauguração ocorreu em 22 de outubro de 2013, exatos 70 anos depois da queda do “BZ393”.
Além das autoridades locais, compareceram à cerimônia altas patentes militares holandesas, o adido militar francês e até o Major-General Pascal Valentin, da Armée de l’air da França, então Comandante do European Airtransport Command da OTAN.
Outros convidados especiais eram os parentes dos tripulantes envolvidos.
Do Brasil, vieram as irmãs Henriette Schteinberg Musser e Hanna Schteinberg, sobrinhas de Sgt. Georges Schteinberg, vindas do Rio de Janeiro, que compareceram junto a outro sobrinho, Georges Schteinberg, de Israel, que recebeu o mesmo nome do tio, Herói da França Livre.
N.A.: O autor gostaria de deixar os mais sinceros agradecimentos a Henriette Schteinberg Musser e Hanna Schteinberg, pelo estimável auxílio que tornou possível a redação dessa biografia.