FEB – Depoimentos – I

“A ordem deles era: ‘Não se entregar!’ – ‘O reforço vem! Lutem e esperem!’ Mas “eles” não sabiam – ou se sabiam, ignoravam – que a aviação ‘deles’ não operava mais por ali… A munição ia acabar, a comida ia acabar, o frio castigava, mas “eles” não se entregavam! Os ‘tedescos’ diziam pra eles, que se entregarem para nós, brasileiros, era melhor! Era garantia de sobrevivência! Os estadunidenses ‘passavam fogo’ mesmo!” Então a gente achava que não seria tão ruim… Quando nos disseram, depois de Belvedere, que o pior ainda estava por vir, foi ‘fogo’! E em Belvedere foi talvez pior até! Era fogo pesado em cima, mesmo! Na Montanha de Castelo foram os piores fogos que eu vi na minha vida, mas até lá, já estávamos acostumados! Em Belvedere eu achei que seria a minha última! O Tenente Portela dizia: ‘Eles não vão massificar muito pra cima de nós, pois têm pouca munição! Vão poupar e não vão denunciar a posição! A gente espera aqui e aguarda a ordem de avançar!’ Mentira, rapaz! Eles atiraram uma noite inteira na gente! E o fogo de Artilharia é o Fogo que não se vê… É sorrateiro! Tu só ouves um zunido “Fiiiiiiiiiiiiiiiiii!” e aquele impacto de pata de elefante no chão: “Bommmmmmm!”. Não tem o que fazer! É esperar e rezar.. Pode cair longe, pode cair perto, pode cair e nem estourar… Mas pode cair, estourar e fazer o que fez com o Nilo e o Aquiles!

O Nilo era meu amigo. Não era assim “Amigo-Amigo”, mas era amigo… Uns dias antes de nos deixar, ele recebeu uma carta da noiva e a carta veio vazia! Só o envelope! No outro dia ele desapareceu dentro de uma “toca”! Nem tinha o que fazer com eles! Desapareceram!

Em três dias eu comi duas vezes, só! Um dia veio uma ‘ração’ dos estadunidenses, no outro veio uma pior ainda! A gente aquecia no capacete! Se colocasse depois, o capacete quente na cabeça gelada pela neve, dava uma “coisa” chamada ‘escama de peixe’! Ficava em carne viva! O capacete era pesado e ninguém gostava de usar… Mas todo mundo usava e nem precisava os oficiais recomendarem aos Sargentos e os Sargentos nos ‘mijar’! “Todo mundo usava porque às vezes você ouvia só um deslocamento de ar’ – ‘Shhhhhhfffffff” e era projétil saindo do nada e a qualquer hora – mesmo não sendo avanço ou tiroteio! Às vezes eu acho que algum praça alemão olhava lá de cima e pensava: ‘Vou atirar naquele ali!’ E assim nós ficamos por três ou quatro dias, não me lembro… Era que nem Gato e Rato! Mas o pior de tudo era o silencio da noite! O silêncio da noite na guerra é o único que pode ser ouvido de tão forte que é! Tudo que se move é suspeito… A respiração, tudo! Foi no silêncio das noites lá na Itália que a gente aprendeu a gostar da nossa terra! A querer voltar! E pra voltar, a gente sabia que tinha que vencer! E pra vencer tinha que lutar! Numa guerra tu não luta por país, por ideal nenhum… Tu luta pela tua vida e a vida do companheiro do lado!

Quando nós tomamos a Montanha de Castelo, em fevereiro, o pessoal do Grupamento de Montanha – que chegou na frente – colocou uma bandeirinha do Brasil enfiada numa baioneta cravada numa árvore! Uma das poucas árvores que sobraram, pois a artilharia acabou com tudo lá, né… Hoje eu lembro daquela cena e me enche os olhos! Na hora, no dia, eu nem lembro o que se passou na minha cabeça! Mas como seria bom que essa juventude de hoje pudesse ver e se orgulhar disso! Quantos de nossos companheiros derramaram o sangue ali e em outros lugares da Itália; uns voltaram faltando pedaços! Eles entregaram o que tinham de mais valoroso: a Vida! A gente não tinha nada, não… Ninguém tinha nada pra entregar a não ser a Vida! A nossa geração pagou um preço tão alto!!! Uns tiveram sorte como eu e voltaram! Às vezes eu me pergunto ‘Porque que eu voltei?’ Deus me deu essa benção! Por isso às vezes, eu choro pelos que não voltaram! Aí a tua mãe me diz: ‘Mas já faz mais de 60 anos!’ Vocês nunca vão entender! Muitos entregaram a vida, deixaram as mães aqui chorando na volta, voltaram em urnas e uns nem voltaram! O Aquiles e o Nilo ainda estão lá naquelas montanhas! Por isso que eu não quis voltar lá em 1985. Não quis visitar Pistóia! Não quis, sabe por quê? Por que para uns, aqueles nomes nas lápides são apenas nomes de vítimas, de heróis… Pra mim são nomes de Amigos! De homens que nem eram homens, eram meninos! Homens que conheci!  Só peço às gerações de hoje que nunca esqueçam esses homens! Eu rezo por eles todas as noites! Uma parte de mim ficou lá na Itália, a outra veio pra cá, teve e criou vocês e agora vê os filhos de vocês crescerem! Nunca deixem de contar essa história para eles! Tomara que nunca mais haja outra Guerra!”

Pedro Bozzetti – Ex-Combatente – Soldado – 1º Regimento de Infantaria – Corpo Médico
Texto escrito em 1993

Sobre Andre Almeida

Ex-militar do exército, psicólogo e desenvolvedor na área de TI.Sou um entusiasta acerca da Segunda Guerra Mundial e criei o site em 2008, sob a expectativa de ilustrar que todo evento humano possui algo a ser refletido e aprendido.

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