Uma parte daquela massa, que agora voltava, estava fisicamente bem; outra estava mutilada, ferida, em convalescença, com neurose de guerra.
Uma pequena fração logrou sair do embate da guerra retemperada, preparada para grandes realizações no pós-guerra. Passaram, por assim dizer, por um processo que lhes fortaleceu a vontade e firmou o caráter, embora sob a forja da violência e da destruição. Foram seres excepcionais que, imediatamente, voltaram ao seu estado normal, como se nada tivesse acontecido.
A grande maioria, no entanto, teve problemas ao reintegrar-se na vida da paz. As neuroses de guerra tiveram as manifestações mais extravagantes em grau, maiores ou menores, naqueles organismos que sofreram, diretamente, os horrores da guerra. Com o passar do tempo, todavia, as marcas foram desaparecendo e a vida se normalizando.
Uma pequena parcela foi para os hospitais neuropsiquiátricos. Alguns ficaram confinados permanentemente, morrendo e desaparecendo aos poucos. Irrecuperáveis, o seu destino foi o mais cruel. Outros, após uma temporada em hospitais, foram devolvidos à vida comum, porém, em estado precário. O tratamento, incompleto, pouco adiantou. Voltaram para as ruas; ora empregados, ora desempregados; transformando-se em molambos humanos, desmemoriados e perdidos, maltrapilhos, passando as noites ao relento e vivendo na mais negra miséria.
Não obstante as medidas tomadas, a sociedade brasileira não teve condições de absorver estes homens e não é surpresa encontrar ainda um pracinha perambulando pelas ruas, como o filho esquecido pela Pátria. O Brasil pagou um pesado tributo pelas consequências maléficas a milhares de ex-combatentes tragicamente afetados pela guerra.
O Herói – Por Rubem Braga
Lembro-me, coisa de um mês atrás, eu saia da casa de Aníbal Machado pela madrugada. Para receber o grande poeta Pablo Neruda, Aníbal convidara muita gente. Ali estavam nossos grandes poetas e muitos homens inteligentes e amigos, e pessoas que cantavam e tocavam, e havia moças sentadas na grama do jardim, em grupos, rindo e bebendo cerveja e cachaça, na noite azulada de luar.
Quando vínhamos pela calçada deserta, avistamos um pracinha. Viera com certeza do Bar 20, e estava talvez um pouco bêbado – seus passos não eram muito seguros. Parou um pouco na calçada e ficou olhando a parede de um prédio fechado. A calçada era de cimento; e entre esses dois planos hostis, ele era um pequeno homem sozinho. Deu alguns passos ao acaso, ora olhando o muro, ora olhando o chão. Talvez por vê-lo assim, logo depois da generosa agitação de uma festa; ou talvez porque dias antes eu havia ido à cidade levar uma criança que queria ”ver os soldados’ chegando da guerra, que a multidão comprimia em uma grande emoção fraterna – a solidão daquele pracinha me fez triste. Com seu uniforme amarrotado de lã verde, as botas de combate e o bibico, ele era, pequeno e escuro, um elemento patético – um pobre homem dialogando com os cimentos e as pedras da rua vazia. Ao seu silêncio confuso e implorativo de bêbado, os dois planos respondiam com um silêncio vazio, seco, sem apelo nenhum. Com certeza, ele já contara a muitas pessoas a sua história; talvez pouco antes estivesse num bar contando a sua história. Mas agora estava sozinho, e a parede de cimento e o chão de cimento não queriam saber de sua história, e o faziam ficar assim, abandonado diante de si mesmo. Tudo que ele pudesse ter vivido, visto e feito era inútil: estava ali sem saber o que fazer, recolhido à tristeza de sua solidão. Acabara a viagem; tinham-se acabado as emoções, o medo, a aventura, a saudade, a confraternização; o oceano de humanidade em que vagara na guerra, e o erguera tão alto dias antes na Avenida, lançara-o ali, naquela triste praia de cimento. Tive impulso de chamá-lo, levá-lo para a mesa de um botequim, fazê-lo falar um pouco de si mesmo, evocar nomes, coisas, lugares e dias – tirá-lo daquela ilha de cimento em que estava perdido. Mas passei apenas, e a mulher que ia ao meu lado disse: – “Coitado desse pracinha…” Não tive o gesto de amigo, deixei-o na solidão trivial da rua. Se ele ao menos caminhasse dois quarteirões – pensei – ficaria só diante do mar aberto, poderia berrar, deitar na areia, chorar, se quisesse.
No dia em que escrevo, vejo no jornal um telegrama de Roma dizendo que embarcaram em Nápoles mais 2300 soldados brasileiros. E o matutino põe esse título de uma boa vontade ingênua, mas fastidiosa, quase irritante: “Regressam 2300 heróis da FEB.” Não, em 2300 homens não há 2300 heróis. Há muito poucos heróis, e vi alguns; e o que mais me espanta neles é seu ar de homens comuns e, mais do que o ar, é serem eles homens comuns. Numa hora em que os outros hesitam, ou se deixam tomar pelo furor das coisas, o herói resiste, e vai, e repete dentro e fora de si mesmo o gesto do homem comum, e insiste neste gesto com um surdo desespero. É um gesto de fraternidade com o destino mais duro e melhor, e ele existe dentro de qualquer um; o herói representa-o numa patética teimosia, ele é o homem comum que se desdobra em um friso de minutos, horas e dias que então ficam eternos. Ele dá o lance, e o aguenta para sempre.
O pracinha abandonado da Rua Visconde de Pirajá era, talvez, um herói; há heróis, e eles são assim, daquele mesmo jeito triste e banal de qualquer outro homem; podia ser um.
Tenho a felicidade ser filha de um expedicionário, que apesar de ter sofrido do talvez pior mal da gerra como, bom soldado que foi lutou até os seus últimos dias.
Parabéns pelo seu trabalho