Janeiro, 1945
João Santana tem 24 anos de idade e um bigodinho preto. Até 1943, quando foi convocado, trabalhava como “acabador” numa fábrica de tecidos de Jacareí, São Paulo, onde mora sua família, à Rua Bernadino Campos, 442.
João Santana veio no primeiro navio e já lhe aconteceram muitas coisas. A pior foi quando ele ficou prisioneiro dos alemães. E foi preciso o tenente e o capitão insistir para ele me contar a história.
“Eu já estou cansado de contar essa história, e até eu não gosto de contar. Quando eu me lembro daquilo, fico triste. Pois o senhor acredite que o medo é maior que a gente tem é depois de tudo acontecido, quando pensa no que passou.”
Começa afinal, a contar. Foi num dia de ataque morro acima. O ataque começara cedo, mas a companhia dele só teve ordem de avançar pelas cinco e meia da tarde, depois que outra companhia atingiu certo objetivo. Santana, que é municiador, estava na sua seção de metralhadora, que foi seguindo um grupo de fuzileiros.
“Estava um dia de chuva danada e quando chegamos lá em cima estava todo mundo molhado. Além disso, estávamos há muito tempo sem comer. O pessoal fez um reconhecimento, mas já ia escurecendo. Como todo mundo estava muito cansado, resolveu-se que a gente devia ficar em uma casa, ficando de fora só umas sentinelas.”
Pelas duas da madrugada, todos acordaram ouvindo tiros de metralhadora, e alemães gritando Heil Hitler. Os alemães não estavam atacando a casa, mas algum outro lugar ali por perto. O sargento Joel Carlos Borges deu ordem para que todos ficassem em posição dentro da casa, mas quietos. A balhureira depois passou. Quando começou a madrugar, saiu o sargento com um cabo e dois soldados para procurar o tenente Fagundes (João Fagundes Sobrinho) a fim de receber ordens. Mas no caminho levaram umas rajadas de metralhadoras que furaram os capotes de dois, e voltaram sem encontrar o tenente. Resolveram então ver se podia falar com o capitão Aldenor (Aldenor Silva Maia), mas isso também era impossível porque havia uma metralhadora nazista em cima do morro, proibindo qualquer ligação.
A casa tinha só uma porta, e o sargento resolveu ficar ali com o pessoal à espera de que viesse algum reforço ou ordem. Mandou que cada homem ficasse numa janela enquanto outros apontavam para a porta.
E o dia foi passando. Santana ficou numa janela com uma pistola. Pela uma da tarde, viu, a uns 30 metros, um alpino italiano que tirava água de um poço. Logo depois apareceu uma soldado alemão.
– fica quieto, pessoal…
Todos ficaram calados e lá fora passaram mais três ou quatro alemães. Outros ainda foram vistos, descendo ou subindo, e Santana disse:
– Sargento, eu estou achando esse pessoal lá fora muito “folgado”.
Vai ver que nosso pessoal está longe e nós “sobramos” aqui. Esses tedescos estão passeando aí com como se estivessem na terra deles…
(A essa altura do dia, o contra-ataque alemão já estava vitorioso e no alto do morro só sobrava mesmo aquele grupo de homens dentro da casa.)
Santana continua:
– Conversamos baixinho lá dentro e resolvemos “ficar firme” mais algum tempo, até que pelas duas da tarde o sargento decidiu: “Vamos mandar bala. Assim pelo menos a gente mata algum e depois vamos ver se conseguimos sair daqui.”. Então mandamos bala. Caíram uns alemães que estavam lá fora, mas logo acudiram outros gritando Heil Hitler e cercaram a casa. O tiroteio durou uns 20 minutos, e cada vez a situação ficava pior para nós, porque nossa munição ia se acabando. Sair da casa não se podia, porque quem chegasse na porta morria…
Um soldado caiu ferido, e o sargento Joel também recebeu uma bala na perna. Quase ninguém atirava mais, por falta de munição. O sargento ferido gritou: “Salve-se que puder!”, dando ordem para que cada um tentasse fugir ou fizesse o que melhor entendesse, pois a situação era sem remédio.
Santana estava num quarto do primeiro andar atirando pela janela, mas acabaram as balas de sua pistola. Nesse momento entrou pela janela uma granada alemã que não explodiu. Outra rebentou lá fora na parede. Santana viu então que havia num quarto um caixão, uma espécie de arca para guardar o trigo, e se meteu lá dentro.
“Entrei no caixão de grano e ouvi que caiu uma granada dentro do quarto. Ouvi o chiado da “bicha” e me encolhi, mais, a minha vontade era me meter todo dentro do capacete de aço. Quando a granada rebentou, levei um choque e saltei no chão, que ficou todo arrebentado. Minha mão direita estava ferida por um estilhaço que atravessou a madeira grossa do caixão, e saía muito sangue. Fiquei um momento num canto e veio outra granada que não estourou também. Aí eu vi outro soldado que entrava no quarto, era um mineiro que não recordo o nome. Ele também não tinha com que atirar e me perguntou o que podíamos fazer. Disse a ele que era melhor a gente se esconder, porque pelas vozes parecia que os alemães já tinham entrado lá na sala de baixo. Ele se meteu atrás de umas esteiras num canto e eu entrei num armário grande. Antes disso, tanto eu como ele tiramos as botinas, que fazia muito barulho no assoalho quando a gente se mexia, e puxamos a faca.”
“Fiquei encolhido dentro do armário, espiando por uma tela. Entrou em um oficial alemão com dois soldados, espiou para um lado e outro e saiu. Aí começou a passar o tempo, e eu estava doido de cansaço e com fome e sede, mas não tinha coragem de me mexer. Resolvi agüentar ali até a noite, porque então era capaz de dar um jeito de escapar.Pela tela, eu via num canto do quarto um monte de baratas que tinha lá.Eu estava com tanta fome que a minha vontade era sair do armário e comer aquelas baratas cruas. Assim pelas cinco e meia, ouvi um barulho na escada e logo dois alemães entraram no quarto em que eu estava. Fiquei lá dentro espiando. Um deles chegou perto do lugar em que o mineiro estava escondido e pensei que lê fosse descobrir o mineiro, mas não descobriu. Abaixou-se perto de um caixote de milho e tirou de lá uma pistola, que eu tinha escondido. Com certeza, na pressa com que meti a pistola no meio do milho, deixei a ponta do cano aparecendo. Ele mostrou a pistola ao outro e os dois conversaram umas coisas em alemães. Aí eu vi que um vinha para o lado do armário. Ele chegou e abriu a porta. Quando me viu, deu um pulo para trás gritando. Eu estava tão fraco e meio tonto, que fiquei ali parado olhando para ele. O outro alemão se encostou na parede e me apontou o fuzil. Eu então levantei a mão e sai. O alemão que tinha aberto a porta do armário saiu do quarto e fiquei só com o outro. Era um alemãozinho de minha altura, mas mais fraco do que eu.Tive vontade de avançar em cima dele e fiquei assim um momento sem saber se dava certo ou não. Mas aí chegaram mais três ou quatros, todos armados com metralhadoras de mão. Eles então me mandaram descer a escada, e foram me dando empurrões e pescoções pela escada abaixo. Lá embaixo havia mais alguns alemães. Um estava com sangue saindo de um beiço, parecia ferido, e todos me rodearam e conversaram lá entre eles, e me agarravam e davam empurrões. Só tinha um meio velho, que estava num canto, que ficava me olhando…
João Santana pára de falar um pouco e fica lembrando.
“É engraçado… A gente numa hora assim pensa umas coisas que só depois a gente vai ver que pensou. Aqueles alemães todos estavam ali com jeito que iam me matar, e aquele outro alemão só ficava me olhando, sem dizer nada. Teve uma hora que ele mexeu com a cabeça assim – Santana abana a cabeça para os lados e como quem diz que não – mas não dizia nada nem para mim nem para os outros, só focava olhando. Os outros me empurraram pela porta afora e lá fora estava um soldado brasileiro caído morto, mas eles me empurraram para um lado. Aí fizeram sinal para que fosse andando, batendo com as pontas das armas nas minhas costas. Eu saí andando, devagar, e eles ficaram parados lá perto da porta. Dei uns cinco ou seis passos. Eu sabia que ia morrer, e calculei que com certeza tinham feito assim com o outro – mandar ir andando e depois “comer ele” com a metralhadora. Eu tinha de passar diante de uma metralhadora que estava do lado da casa, e, além disso, estavam atrás de mim estavam os homens com os fuzis e metralhadoras de mão. Eu nem sei o que pensei, estava muito cansado e achei que afinal era melhor morrer mesmo do que ficar preso. Mas de repente…
Deu-me uma coisa, eu resolvi correr, que eles atirassem logo porque senão eu escapava. Aquilo foi num instante, só sei que dei um pulo de lado, parece que bati com o pé numa metralhadora, depois dei outro pulo para o lado em que tinha uma parreira. Eles abriram fogo. Eu me deitei no chão e fui rolando. O senhor sabe, essas lavouras italianas têm uns degraus assim, eu fui rolando por ali como um louco e eles atirando. Uma hora parei e me levantei um pouco, mas logo vieram umas duas rajadas, e ouvi as balas assobiando perto de meus ouvidos. Foi então que eu pensei que podia escapar, e me joguei depressa outra vez pelo morro abaixo: ia rolando, depois me arrastando, depois sai correndo…”
Quando Santa se viu longe dos tiros, parou um pouco para descansar. Estava todo sujo, elameado e com sangue, por causa do ferimento na mão. Reparou que devia estar perto do PC do capitão e resolveu ir até lá se apresentar a ele e fazer um relatório do que acontecera. Quando chegava perto do lugar em que devia estar o capitão, começaram a rebentar granadas de morteiro. Ele então parou. Depois continuo e gritou chamando, mas ninguém respondeu.
“Saí outra vez morro abaixo, e sentia uma sede horrível. Vi um corregozinho e me deitei no chão e bebi água, lavei um pouco a cara e as mãos com aquela água fria. Andei mais um pouco e vi uma casinha. Fui lá e encontrei um italiano velho. Esse italiano me disse que nossos homens todos já tinham recuado morro abaixo. Perguntei se lê não tinha “niente a manjare” e lê disse que não. Pedi “aqua”, e quando ele veio me trazer “aqua”, vi um garrafão no canto e pedi “vino”. Ele disse que “si, si”, e me trouxe “vino” numa caneca. Bebi um pouco e aquilo me esquentou um bocado. Então fui embora à direção da Barga. No meio do caminho encontrei o capitão Atratino, que vinha subindo o morro com uma patrulha…”
Era o capitão Atratino Cortes Coutinho, que resolvera, depois do recuo geral, voltar até uma posição na esperança de socorrer um tenente que ficara isolado com seus homens.
“quando eu vi o capitão, pensei só assim: estou salvo. O capitão chegou perto de mim e pôs a mão no meu ombro, depois me abraçou. Eu sentei na estrada e os soldados me deram chocolate para comer e água para beber. Depois eles tocaram para frente e eu fui andando até a Barga. O senhor quer ver uma coisa? Quando eu cheguei lá no PC, que vi que estava seguro mesmo, e todo mundo veio falar comigo, sabe o que aocnteceu? Eu _- bumba – desmaei…
O ferimento na mão de Santana era leve nem sequer chegou a baixar no hospital. Estou conversando com ele na cozinha de uma casa italiana. Em volta há dois oficiais e alguns soldados. Um deles diz, quando Santana acaba a história:
– Aquilo foi um dia desgraçado. O que vale é que matamos muita gente e fizemos muitos prisioneiros. Esse sargento Joel de que você falou está preso com os alemães. Outro dia dizem que ele falou no rádio e disse que tinha ficado bom do ferimento na perna e estava preso e mandou abraços para o pessoal da companhia.
Santana comenta:
“A mim é que eles não pegam. Depois daquilo… Quando eles me levaram para a sala de baixo, me tiraram as luvas, a carteira, minha faca de trincheira, o cinto de guarnição, até a blusa me tirara. Cada um ficou com uma coisa. Só aquele alemão que estava num canto é que não se mexeu, só ficava me olhando com uma cara triste. Eu não sei, mas acho que pelo jeito aquele sujeito está cansado da guerra e se ele pudesse se entregava. É um homem de uns quarenta e tantos anos, com um jeito assim de sujeito que está cansado. Acho que ele estava sentindo pena de mim… Também naquela hora era a mesma coisa que eu já estivesse morto. Aquele jornalzinho do batalhão, A Cobra Fumou, escreveu lá que eu agora comemoro dois aniversários. Um é o dia em que nasci mesmo, outro é 31 de outubro. É isso mesmo, eu nasci outra vez naquele dia. Também agora nesta guerra tenho certeza de que não acontece mais nada. Quer dizer, qualquer um está sujeito… Mas eu não sei não, eu tenho certeza de que isso acaba e eu volto para Jacareí…”
Crônicas da Guerra na Itália – Pag.113 – Rubem Braga
Biblioteca do Exército – Editora