Crônica da Segunda Guerra – O Chão

8 de março de 1945.

Na encosta do morro, naquela posição que os brasileiros haviam conquistado na véspera, encontrei um soldado que disse ter visto três cadáveres de alemães. Como eu trazia a péssima Karat que comprei em Pistóia, ele pensou que eu fosse fotógrafo, e perguntou se não queria ir até lá.

-É longe?

-Não Senhor. É pertinho. Só o que tem é que é meio perigoso…

Pouco antes caíra uma grande granada de morteiro ali por perto, e pensei que era a esse perigo que se referia o homem. Como estávamos em um lugar sob as vistas do alemão, o perigo era mais ou menos igual em qualquer parte, e resolvi ir. Andamos, eu atrás dele, uns 15 minutos. A certa altura, ele fez menção de atravessar uma cerca, mas se deteve.

-Esqueceu o caminho?

-Não senhor, mas eu acho que por aqui não se pode ir. Eu da outra vez vim de lá do alto do morro…

O homem olhava muito para o chão, e perguntei:

-Já tiraram minas aqui?

Ele achava que não. Os mineiros haviam apenas retirado minas em um trilho para que nossos infantes passassem. Além disso, haviam assinalado alguns trechos minados, à margem do caminho. Mas o caminho passava lá por cima e descia por outra encosta.

Havia, cortando a grama, duas ou três trilhas mal marcada, e podíamos ver, à esquerda, uma fita branca que talvez indicasse um campo minado, mas não delimitava nenhum terreno precisamente. Além disso, fitas brancas não usadas em algumas estradas ruins para que os carros não se precipitem em buracos no escuro, quando não podem acender os faróis.

Vários raciocínios desse tipo me acudiram à cabeça, mas nenhum deles levava a outra conclusão além desta: nós podíamos estar andando em um campo minado, ou estar na iminência de fazê-lo.

Voltar era quase igualmente tão perigoso quanto tocar para frente; o remédio era andar olhando para o chão.

Não sei o que se passou na alma do pracinha quando ele confessou que não sabia mesmo o caminho seguro, só sabia mesmo que os alemães mortos estavam entre um pequeno grupo de árvores e uma casinha mais no alto. Mas eu senti medo. É um tipo de medo assim: você ter de andar descalço num capinzal cheio de cobras venenosas. E sem esperança de contraveneno: e com a idéia de que se, no lugar de passar correndo, você passar bem devagarzinho, olhando bem, pisando com todo cuidado, tem uma vaga probabilidade, muito vaga, de não ser arrebentado por uma das minas maiores, ou ter o pé arrancado por uma das menores.

O soldado – caboclinho baixo – começou a caminhar assim, lentamente e eu ia pisando aproximadamente onde ele pisava. De repente voltou-se:

– Vamos voltar? A gente pega outro caminho…

Antes que eu respondesse, li nos seus olhos que ele próprio reagia contra o que acabara de dizer. Subitamente começou a andar mais depressa e eu o segui, também disposto a ir para o inferno, mas sair de qualquer modo daquela agonia.

Apesar dessa disposição, eu não pude de deixar de refletir que se ele pisasse em qualquer mina, eu também seria atingido pela explosão, tão perto estávamos.

Atravessamos um trecho de pasto onde havia espalhados, pedaços de cartucheiras, papéis, restos de equipamento, pisando no chão com força. Mas quando chegamos junto a uma valeta, o medo voltou de súbito, nele e em mim. Resolvemos, por vagos indícios, que o trecho em nossa frente era suspeito do outro lado da valeta havia um campo arado há muito tempo, e sob a camada superficial de terra julgávamos distinguir coisas que podiam ser minas.

Não chegamos a trocar idéias a respeito, dobramos à direita, outra vez lentamente, pisando com mil cuidados, procurando aqui e ali pequeno pedaço de terra que inspirasse confiança. Lembrei-me, então, de uma fotografia de Santos Dummont, publicada por ocasião de sua morte, em que ele aparecia com um par de asas mecânicas – um invento em que estava trabalhando. Vi nitidamente a fotografia, e me ocorreu que afinal de contas, com tanta coisa que inventam, não seria surpresa se inventassem um aparelho assim, leve, com o qual se pudesse voar ao menos baixinho, nem que fosse um centímetro acima do chão, já seria suficiente. Lembrei-me então de um sujeito que encontrei no dia em que houve aquele horrível desastre, quando Santos Dummont chegou ao Brasil, um sujeito chato, eu estava em Niterói. De súbito me desagradou essa classe de pensamentos, e meus olhos caíram num terreno próximo, onde vi alguma coisa que me interessou.

Chamei a atenção do soldado, e ele também me olhou. O terreno. Não sei se algum autor já descreveu o prazer verdadeiramente grande e solene que um homem sente em andar sobre a terra, pisando a terra com suas botas, a boa terra feita para o homem andar para um lado e outro, andar para procurar comida para comer, água para beber, mulher, casa, árvore, sol e até cadáveres alemães.

Chegamos logo a um caminho, e um pouco à direita estava o primeiro corpo.

O homem tombara provavelmente vítima de uma granada, dentro de sua posição, um foxhole raso. O corpo não apodrecera, certamente graças ao frio, e é provável que tenha estado muito tempo coberto pela neve.

O capacete de aço cobria uma parte de sua cabeça, e a cara estava voltada para um lado, já meio descarnada. Pelo seu culote, parecia ser um oficial ou um sargento. E ali, sozinho, jogado na terra, dava a impressão estranha de que tinha encolhido depois de morto.

Mais adiante, num buraco que parecia uma posição de morteiro, estavam dois cadáveres de soldados. Um deles tinha a mão descarnada, e a brancura dos ossos ressaltava sobre o seu uniforme, cuja cor se confundia com a terra. O outro, cuja caveira começava a ser visível, tinha o dólmã rasgado, e havia sinais de alguém começara a lhe aplicar uma atadura no braço. Bati umas fotografias – e voltamos pelo caminho que o soldado conhecia.

A esta hora os homens já devem estar enterrados no Cemitério Militar Brasileiro. Deve estar lá, cada um dentro de um saco, no fundo do chão, esperando o momento em que serão removidos para a Alemanha.

Muitos corpos enterrados em muitos campos da Europa e do Oriente.

Milhões de corpos enterrados em monótonos cemitérios russos, alemães, franceses, chineses, americanos, húngaros, ingleses, brasileiros, búlgaros, italianos, japoneses etc., etc., etc. Milhões de corpos de todas as raças humanas enfileirados nos cemitérios do mundo.

E cadáveres de mulheres e crianças, juízes e lavadeiras, gente de toda espécie, que a guerra foi matar dentro de seus lares, no lugar onde trabalhavam, ou na rua quando estavam cantarolando, ou chorando, ou rezando, ou comendo…

São milhões de criaturas humanas e todas estão debaixo da terra. Cuidado, caminhantes do futuro. Pisai com muito cuidado, esses corpos são minas, são terríveis minas de tempo. Pisai devagar, olhai o chão, olhai com toda humildade o chão.

É preciso olhar o chão, o chão da terra, o chão dos homens. Traçam demasiadas fronteiras no chão, dividem o chão entre poucos homens, torturam o chão, conspurcam o chão. Libertem o chão!

Os homens precisam de chão livre, para andar. E é uma grande e solene coisa: andar.

Fonte: Crônicas de Guerra – Rubem Braga

Sobre Ricardo Lavecchia

Desenhista, Ilustrador e pesquisador sobre a Segunda Guerra Mundial

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