FEB – A Morte de Montese

*Por Joel Silveira

Estive aqui em Montese pela primeira vez três dias atrás, quando esta pequena cidade – singela como um presépio – ainda era para os pracinhas brasileiros uma conquista incerta. Os soldados do 11º Regimento de Infantaria já tinham se apoderado de mais da metade da cidade e dominado os últimos pontos de resistência dos alemães. Mas os nazistas, espalhados pelos montes em derredor, jogavam sobre a cidade, minuto após minuto, uma chuva interminável de morteiros.

Nosso jipe – meu, de Egydio Squeff e de Thassilo Mitke – teve que correr como um foguete pela estrada quase impraticável, e assim mesmo tendo o cuidado de não sair um centímetro sequer fora da margem, toda ela minada. Até agora não sei como o motorista Adão – um fero cabo de São Borja – soube cumprir a dupla e ingrata tarefa de andar a 50 milhas por aquele caminho amaldiçoado.

Encontramos em Montese apenas vestígios – ou melhor, resíduos – de uma cidade que em tempos de paz deveria ter sido um belo, um carino lugarzinho equilibrado numa crista suave, com a sua torre medieval, esguia como um pinheiro, o vale estendendo-se lá embaixo, suas coloridas bancas de jornal e seus monumentos antigos.

Brasileiros e alemães, no contraponto da luta ofensiva e defensiva, reduziram Montese a ruínas. Durante horas, os homens do 11º Regimento lutaram de casa em casa, até que os últimos cinco alemães foram mortos diante da igreja, velha de séculos. Há quatro dias que Montese já está definitivamente em mãos dos brasileiros, mas ainda é um lugar sem sossego. Suas ruas estão desertas. Ontem à noite o que restava da torre veio abaixo – vítima de um morteiro alemão.

O Posto de Socorro Avançado brasileiro, onde há três dias estivemos em visita aos pracinhas feridos, foi hoje pela manhã atingido por uma granada incendiária – e ainda agora arde como uma imensa fogueira que ninguém se preocupa em apagar.

Nestes últimos três dias as coisas não mudaram muito em Montese. Os alemães continuam em suas casamatas, fincadas nas grimpas a menos de um quilômetro da cidade, e ainda não podemos andar a descoberto ou atravessar sem cuidado as ruas entulhadas de destroços. Muitas destas ruas, na parte sul da cidade, a que escorrega até o Vale do Panaro, bem lá embaixo, continuam bloqueadas, com suas casas desmoronadas e seus quarteirões minados. Se, por exemplo, quisermos passar aqui de onde estamos, do lado direito da Via Augusto Righi, para o outro lado, teremos, que fazer isso numa disparada, pois a menor demora ou descuido e um convite a uma certeira e raivosa rajada das metralhadoras “lurdinhas” dos alemães, ou a uma maciça concentração de tiros de morteiros.

Escrevo esta reportagem do Posto de Comando do Major Henrique Oest, nesta que foi a rua principal de Montese. O andar superior do prédio onde me encontro simplesmente não existe mais, de forma que o major teve que alojar num quarto dos fundos, dos raros que sobraram, escuros como se fosse noite, todos os seus apetrechos de guerra, mapas, telefones, caixas de munição e de comida enlatada.

As portas estão todas protegidas por sacos de areia, que também se acumulam no piso lá em cima. São precisamente 11 horas da manhã: escuto os morteiros alemães explodindo em diferentes pontos da cidade. Outros ruídos, diferentes e desiguais, me dizem aos ouvidos já acostumados com a voz da guerra que outro muro ou casa de Montese foi abaixo e que uma nova cratera fumegante foi cavada nas proximidades.

Quando os alemães fizerem uma pausa no seu trabalho, e eu conseguir dar uma espiadela lá fora, é mais do que certo que irei ver novos indícios da guerra que está acabando com Montese.

Possivelmente o prédio que era a farmácia não existirá mais; e o esverdeado balcão da bela casa da esquina, debruçado sobre o vale, também já terá desaparecido. Ali, na paz, é o que me conta o velho contadino, os homens bebiam vinho, discutiam política e futebol. E as moças, nas tardes dos sábados e domingos, mostravam seus melhores vestidos. Se esta concentração de fogo alemão continuar, e o nosso PC começar a ser alvo fácil, o remédio é descer até a adega – um corredor úmido e sem luz onde os alemães deixaram enterrados litros e litros de um grosso e purpúreo vinho espumante. E se o tiroteio demorar, a solução é provar do vinho e deixar que ele, como um sangue novo, ponha em forma alma e nervos tensos e atormentados. Depois voltaremos para o mundo lá em cima, e o PC retomará a sua rotina: o major atenderá a incansáveis telefonemas de seus superiores ou subordinados, receberá e transmitirá ordens, pedirá tiros de nossa Artilharia sobre as cotas ainda dominadas pelos alemães, dirá alguns palavrões e blasfêmias, e repetirá 10 ou 20 vezes mais, neste resto de dia, a sua frase habitual: “Eles não podem com a gente”. Não podem mesmo.

Sobre Andre Almeida

Ex-militar do exército, psicólogo e desenvolvedor na área de TI.Sou um entusiasta acerca da Segunda Guerra Mundial e criei o site em 2008, sob a expectativa de ilustrar que todo evento humano possui algo a ser refletido e aprendido.

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