Vinte horas depois da conquista de Castelo os caminhos lá na frente ainda não estavam inteiramente transitáveis. Havia muitas armadilhas, campos e estradas estavam minados, mas um sargento disse ao correspondente de guerra Joel Silveira que, “com cuidado”, ele poderia chegar até o PC do coronel Franklin. “A ordem é não deixar a estrada”.
Quando o jipe começou a galgar, quase alpinista, o sinuoso e íngreme caminho que leva à montanha, apenas duas linhas paralelas que as viaturas abriram na lama e às quais a neve depois deu uma dureza de ferro. Os alemães foram expulsos de suas posições altíssimas e privilegiadas, mas ainda continuavam com seus esparsos tiros de morteiro e artilharia. Quando o jipe chegou no meio do caminho deserto e calado como se ainda fosse “terra de ninguém” – o correspondente e o motorista avistaram as granadas nazistas que, por cinco ou seis minutos, explodiam lá embaixo, em Gaggio Montano. O pracinha que ia guiando perguntou ao correspondente se ele queria parar ali. Joel Silveira respondeu que estavam muito expostos e o melhor seria seguir em frente, até a próxima casa. “E veja se você pode ir mais depressa”.
Três pracinhas brasileiros os receberam no bangalô abandonado – estavam estirados nos montes de feno e se levantaram rápidos, imaginando que o correspondente era qualquer capitão. Todas as casas desta região não estavam mais desertas e caladas, como lares mortos de um mundo impraticável. Em todas elas, era fácil divisar a presença de um pracinha brasileiro, com seu fardamento amarfanhado, a barba por fazer e um tremendo cansaço dormindo nos olhos pesados de sono.
Quando havia qualquer instante de folga e tranqüilidade – e eles eram tão raros – os pracinhas se estiravam ao chão, nas colinas de feno ou na grama rala, e ficavam minutos e minutos sob o sol do fim de inverno. Eram pequenas as reivindicações dos pracinhas, então possíveis após a expulsão dos nazistas.
Quarenta e oito horas antes, tudo aquilo era chão ingrato e inimigo, batido pela artilharia, pelas metralhadoras e morteiros, à noite iluminado pelos foguetes alemães – um campo de luta onde as sestas eram impossíveis. A fadiga do pracinha era, nesta frente, a fadiga do tenente e do coronel, e o tenente-coronel Emilio Rodrigues Franklin recebeu Joel Silveira com uma fisionomia típica de soldado da vanguarda. Há mais de duas noites que ele não dormia, duas olheiras roxas enrolavam seus olhos. Mas a luta não havia terminado, e o Posto de Comando avançado do 3º batalhão do 1º Regimento, um dos primeiros a subirem ao cume de Castelo, ainda apresentava, na manhã do dia 22 e nas seguintes, um aspecto de trincheira.
As informações chegavam de minuto em minuto, o rádio estava aberto, os telefones tilintavam. Na porta do PC do coronel Caiado de Castro, alguns metros à direita, havia um grupo de prisioneiros nazistas – seis ou sete, alguns muitos moços, alguns muito velhos, e entre eles um alto e espigado sargento cuja especialidade, parecia, prestar continências seguras e prussianas.
Uma das coisas que incomodavam os correspondentes de guerra, é que não podiam revelar conversas tidas com soldados alemães presos.
Durante dois dias algo foi à atração máxima do PC avançado. Tratava-se do cadáver de um nazista, ou mais precisamente, de nove décimos de um cadáver nazista. Uma granada brasileira, artigo de nossa artilharia, entrara dentro de sua casamata, em cima da crista, e rebentou em cima do alemão. E o corpo jazia num dos quartos do PC: do lábio inferior para baixo, era um praça alemão, com seu uniforme azulado suas botas de cano alto, tudo mais ou menos gasto; do lábio inferior para cima o que existia havia sido levado pela granada.