O dia 24, véspera de Natal, data das mais evocativas para os brasileiros, cristãos e católicos romanos na sua quase totalidade, foi um domingo. As sentidas recordações do ambiente familiar – dirigidas para os mais diversos povoados da Pátria distante, com suas características próprias de comemorações – estavam expressas marcantemente nas fisionomias de todos.
As cartas recebidas e o deslumbramento que causava a queda da neve, que ia cobrindo tudo de uma brancura enternecedora, não davam para saber se aliviavam ou ainda mais aprofundavam nossas tristezas.
Não silenciaram as baterias no Natal
Durante toda a noite a artilharia nazista ecoou pelos vales dos Apeninos, e manteve as tropas brasileiras acordadas nas camas-rolos do QG avançado. O bombardeio começou no fim da tarde, mas desta vez não se tratava de um daqueles tiroteios vesperais, aritméticos e econômicos: a artilharia brasileira passou a responder logo depois, e era sentido pelos soldados, de olhos abertos para escuridão do quarto, uma escuridão pesada e fria, quando as granadas explodiam perto, com um barulho de ferro rebentado e um estremecem violentos em todas as paredes.
Os calibres eram vários, cada qual trazia sua voz própria, e já era possível ao ouvido acostumado distinguir entre o som rouco do morteiro e o explodir metálico da artilharia pesada.
“Os tedescos aproveitam a noite”, dizia um tenente, recém-chegado do “front”, e lá fora se espraiava um luar claro como dia, uma lua redonda e muito branca, da brancura de neve, caindo sobre as montanhas e os múltiplos vales da região.
Dia 25, data máxima da Cristandade, os membros da FEB estavam melancólicos e deprimidos. De qualquer maneira, talvez ainda conduzidos por um sentimento humanitário, não houve, por parte dos beligerantes, bombardeios naquele dia, pelo menos quanto a Porretta e outros setores da Divisão Brasileira.
Quando se levantaram, na manhã seguinte, tudo em redor parecia ter sido encoberto por várias mãos de cal: a neve se acumulava na entrada da casa onde estavam hospedados, e dezenas de pracinhas e civis italianos, afogados em mantas, abriam caminhos na coberta branca.
O termômetro lá fora marcava a temperatura de 8° negativos. Na noite anterior uma granada atravessara a parede do modesto cinema da cidadezinha; e lá estava o rombo, como uma cratera solta no espaço. Outros projéteis, dezenas deles, andaram cavando buracos pelas proximidades, e aqui e ali, nas fraldas dos montes ou sobre os campos, era fácil descobrir um pedaço de chão cavado sujando o branco muito puro.
A chuva de neve diminuía de intensidade, mas os flocos envolviam o pequeno carro descoberto e acabava por cobrir os soldados com um novo uniforme, branco como o chão. Antes de atravessarem a pequena e estratégica ponte, tão visada nestes últimos dias pelos nazistas, um sargento diz: Nestas últimas vinte e quatro horas caíram aqui 46 granadas.
Destacamentos de outros soldados brasileiros voltavam da linha de frente, em coluna por um ao lado esquerdo da estrada e muitos deles já traziam os seus novos uniformes de inverno, todo branco, o que conseguia dar a qualquer cearense ou carioca a aparência gelada de um esquimó ou nórdico.
Uma bateria pesada brasileira: ativara bem próximo, era possível sentir o silvo das granadas quando passavam sobre as cabeças dos soldados, num vôo curvo que terminava nas posições alemãs, atrás dos morros defronte.
O “front” brasileiro era um dos mais difíceis de toda a linha do Quinto Exército. As estradas corriam paralelas aos diversos montes dominados pelos nazistas. Qualquer aglomeração de viaturas, neste caminho de mil curvas, era desmantelada por concentração da artilharia inimiga, e todo o abastecimento era feito dentro de mil cuidados, quando a noite escura protegia ou através da cortina de fumaça que proibia a menor visibilidade.
Num destacamento, o coronel e os oficiais recebiam os recém-chegados com um café quente e um fogo amigo para o amortecimento dos pés. Desde o dia 24 de dezembro de 1944, quando a primeira grande nevada iniciou uma nova etapa nas operações, que o inimigo não descansou mais.
E os alemães, naturalmente entusiasmados com os sucessos da frente belga, andavam mais agressivos e ousados do que o comum. Quase todas as noites suas patrulhas, num grupo de vinte e poucos homens poderosamente armados, desciam até as linhas brasileiras. Mas nem todos voltavam: alguns ficavam estirados para sempre na “terra de ninguém”, outros eram feitos prisioneiros. Arrogantes, alguns, mas outros se mostravam cansados e distantes. Um sargento nazista prometeu que a Luftwaffe voltaria muito em breve, e não havia quem o convencesse de que nenhuma contra-ofensiva poderia mais salvar a Alemanha.
Os estadunidenses, no respeito às peculiares tradições do seu povo, ofereceram peru e vinho aos seus milhões de combatentes espalhados por todo o mundo, em comemoração da data, e os brasileiros, como forças aliadas, estavam incorporados ao seu grande e eficientíssimo Exército.
Um major informa que há cinco noites que não dormia direito, e apontava, defronte, um edifício semidestruído que fora atingido em cheio no dia 26. – “Passamos um Natal inesquecível: atendendo dezenas de telefonemas e ordenando fogo às baterias…”
As baterias ao lado atiravam. O inimigo respondia, intermitente.
É preciso ressaltar a ingenuidade de pracinha, que assim falou a um oficial: “- Eu pensei que os tedescos fossem respeitar o Natal, a data do Senhor. Mas parece que eles ficaram ainda mais enfezados”.