Aos 106, o homem que viu um kamikaze passar sobre sua cabeça

William McClintick tem 106 anos. Diz isso sem alarde, como quem conta os degraus da escada. Acorda cedo, mesmo sem ter muita pressa para nada. Caminha devagar, já não dirige desde os 95. Foi presente para os filhos, diz: “assim eles não precisam mais se preocupar comigo no volante”.

Um dia, encostado na poltrona, mostra a cicatriz do tempo. Não é de guerra. Foi o soprador de neve que arrancou a ponta do dedo. “Veja só: escapei de um kamikaze, mas perdi pro quintal”, ri com aquela calma de quem já viu demais para se aborrecer.

Ele fala da guerra como quem revisita um quarto antigo. Em 1939, entrou na reserva da Marinha. Lia revistas navais que o vizinho lhe passava. Enquanto os rapazes da idade descobriam mulheres, McClintick descobria motores, convés, navios. Primeiro embarque: o USS Idaho, patrulhando o Atlântico. Roosevelt e Churchill tramavam acordos, a marinha vigiava os alemães. Quando a guerra estourou, ele já estava na Islândia.

Veio Pearl Harbor, e logo depois as Aleutas. Radar, novidade daquela época, pipocando sinais no horizonte. A artilharia disparava tanto que os canhões queimavam as próprias bocas. Mais tarde, já no Pacífico, serviu no porta-aviões USS Savo Island. Era oficial de artilharia. Ficava no ponto mais alto da embarcação, vigilante, esperando o céu se abrir em ameaça.

Até que um dia veio o kamikaze. O avião mergulhou, despedaçado, em chamas. Passou a cinco pés da cabeça dele. “Se viesse um pouco mais baixo, eu não estaria aqui”, comenta, como se dissesse algo trivial. O impacto levou o radar, o rádio, e deixou chover parafusos japoneses sobre o convés. Ninguém morreu. Só um homem pediu Purple Heart por ter sido arranhado por rebites.

McClintick perdeu amigos. O mais próximo caiu numa ilha e sobreviveu semanas comendo raízes e insetos, até que nativos o encontraram. Outros não tiveram a mesma sorte. Ele lembra de corpos sem braços, sem pernas, levados para a enfermaria. “A gente não esquece”, sussurra.

Casou com uma mulher que, segundo ele, era “pura A”. Forte, capaz de atravessar meio país com duas crianças no carro, sem drama. Só assim, ele diz, é que um oficial aguentava a vida da Marinha.

Aos 41 anos se aposentou como comandante. Trabalhou depois numa empresa ligada ao setor espacial. “Sou um triplo aposentado”, brinca, juntando pensão, previdência e salário.

Hoje mostra o que chama de “ninho”: cartas enviadas à mãe durante a guerra, guardadas com cuidado. Um envelope do presidente, fotos de governadores, lembranças que já não sabe se guarda ou se joga fora. Ao lado, a enfermeira o visita toda sexta, mede pressão, escuta o peito. Ele resmunga que não o deixam mais mexer no jardim. “Foi um carrapato que me trouxe um infarto, lembra?”, recorda.

E então solta uma risada curta, meio debochada, quando alguém lhe pergunta se ainda se comporta. “Não. Claro que não.

Sobre Ricardo Lavecchia

Trabalho como vendedor, mas tenho como hobby desenhar e pesquisar sobre a Segunda Guerra Mundial.

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