Batalhas da Segunda Guerra – Operação Jericho, A fuga de Amiens

 Aquela madrugada de fevereiro de 1944 estava  particularmente gelada nos arredores de Amiens, uma pequena e ancestral cidade da Picardia, norte da França.

Dentro dos altos muros de sua velha prisão, em parte tomada pela Gestapo, a implacável polícia política do regime nazi, todos, apesar do desconforto inerente a este tipo de instalação, tentavam dormir.

Para um grupo especial de prisioneiros, todavia, tal coisa era deveras difícil; eram todos membros ou colaboradores da Resistência a ocupação nazista e sabiam que aquela fria e escura noite de inverno seria provavelmente sua última na Terra.

 

A prisão de Amiens em chamas após o bombardeio dos Mosquitos da RAF.

Trancados em suas celas numa área segregada da prisão – chamada pelos franceses como “o lado alemão” – guardados por uma guarnição das SS e longe de qualquer auxílio, estes homens e mulheres não nutriam qualquer esperança de salvação.

Nos meses anteriores, a Resistência naquela região da França havia sofrido sucessivos reveses, encontrando-se enfraquecida pela prisão ou morte de grande parte de seus líderes e infestada de informantes.

No entanto, obstante toda a dificuldades, um homem não estava disposto a ver aqueles valorosos patriotas mortos na ponta de uma corda ou assassinados com um tiro na nuca.

Seu nome era Dominique Ponchardier, um veterano dos combates de 1940, que, após recuperar-se de seus ferimentos de guerra, se engajou na resistência subterrânea e tornara-se um dos principais nomes da Inteligência Aliada na França Ocupada.

Ponchardier tinha consciência do futuro negro de seus companheiros de armas, pois, poucos meses antes, em outra operação da Gestapo que havia acabado com a prisão de vários franceses, doze deles haviam sido sumariamente executados.

Por outro lado, também sabia de que os Maquis da guerrilha jamais teriam condições de resgatá-los e, se por acaso isso fosse tentado, acabaria num grande banho de sangue.

Assim, não teve dúvidas em usar seus contatos nos obscuros meios da inteligência militar britânica para solicitar uma operação de resgate vinda do outro lado do Canal da Mancha.

Como justificativa, alegava que entre os prisioneiros poderiam estar dois agentes aliados e figuras chaves na Resistência, com informações privilegiadas que não poderiam cair em mãos do inimigo; Além do mais, seria algo humilhante para as forças de ocupação alemãs e igualmente um incentivo para os desmoralizados e fragilizados guerrilheiros no norte da França.

   O que o líder francês pedia a princípio parecia impossível e, se possível, possivelmente não daria certo; mas, mesmo assim, foi levado muito a sério pela inteligência na Inglaterra e aprovada pelos oficiais que conduziam os esforços de guerra dos britânicos.

Ele pedia que a RAF realiza-se um ataque de máxima precisão, destruindo as instalações ocupadas pelos guardas das SS e ao mesmo tempo abrindo uma brecha nos grossos muros de tijolos da prisão, permitindo a fuga dos prisioneiros condenados.

Além do mais, segundo Ponchardier, qualquer um dos patriotas ali preferiria morrer sobre as bombas aliadas a ser assassinado com uma bala na nuca, a habitual forma de execução da Gestapo.  

 

Imagem retirada de um filme da famosa agência Pathé de Londres, mostrando Charles Pickard se preparando para o raid do qual nunca voltaria. Note que ele veste um blusão camuflado dos paraquedistas britânicos

Os homens ideais para o serviço

Naquele período do conflito mundial, quando os preparativos para a Operation Overlord, o futuro desembarque na Normandia, encontravam-se muito adiantados, a condução das operações aéreas sobre a França Ocupada já estavam a cargo da Allied Expeditionary Air Force (AEAF) do Air Marshall Trafford Leigh-Mallory, que, em concordância com um de seus mais proeminentes oficiais, o igualmente Ele lutou na Campanha de Galípoli durante a Primeira Guerra Mundial como parte das Forças Expedicionárias Neozelandesas, sendo dispensado por ser considerado incapaz medicamente.

Coningham foi para o Reino Unido e juntou-se ao Corpo Aéreo Real, onde tornou-se um ás da aviação.

Ele chegou a um oficial sênio da Força Aérea Real durante a Segunda Guerra Mundial.">Air Marshall Sir Arthur Coningham, comandante da 2nd Tactical Air Force (2nd TAF), entregou os estudos de viabilidade para o raid, bem com seu planejamento e execução ao Nr. 2 Group, sediada no campo da RAF em Hunsdon, Hertfordshire e sob chefia do Air Vice Marshall Basil Embry, o qual, por sua vez, entregou a tarefa aos três esquadrões da Nr. 140 Wing, equipada com a mais prolífica versão da aeronave que passaria para a história da aviação como a “Maravilha de Madeira”, o De Havilland Mosquito FB Mk. VI. Seu líder, o Group Captain Percy Charles Pickard, de 28 anos, era uma estrela emergente na RAF, muito conhecido pelo publico nas ilhas britânicas por ter sido o principal personagem de Target for To Night”, um famoso filme de propaganda do Bomber Command (Comando de Bombardeio).

Após analisar a ideia inicial, em reunião com Coningham, Basil Embry afirmou que seria possível de realizar, mas precisaria maiores informações para trabalhar no planejamento. A partir daí, os Spitfires do No. 1 Photographic Reconnaissance Unit da RAF começaram uma campanha de voos sobre Amiens, ao mesmo tempo que Ponchardier  recebeu ordens de reunir qualquer informação que julgasse razoável e enviá-las a Londres.

Estes preparativos terminaram por produzir importante referência fotográfica, usada para construção de uma maquete detalhada da prisão e seus arredores, sobre tal material e informações, Embry e Pickard se debruçaram para a formulação dos planos de ataque, que ganharam o nome código de Operation Jericho, em alusão ao episódio do Velho Testamento onde Deus derrubou as Muralhas de Jericó, permitindo que os israelitas a tomassem.

Na verdade, apesar de aparentemente aleatória, a escolha desses dois oficiais para gerenciar a operação não podia ter sido mais acertada: Pickard, com uma Distinguished Service Order (DSO) e duas barras para sua Distinguished Flying Cross (DFC), estava entre os mais experimentados pilotos de bombardeio da RAF e havia passado um turno de combate com o 161 (Special Duties) Squadron, infiltrando agentes dos serviços secretos britânicos e abastecendo os movimentos de Resistência por toda a Europa Ocupada.

Entre as inúmeras operações secretas em que esteve envolvido, figura a chamada Operation Biting, levada a cabo em fevereiro de 1942, para infiltrar um comando de paraquedistas na costa francesa, a fim de roubar toda uma estação de radar inimiga.

Já Basil Embry, em 1940, como Group Captain, foi abatido sobre a Saint-Omer e capturado pelos alemães, conseguindo depois se safar de seus captores enquanto era levado para a retaguarda, tendo passado dois meses na França Ocupada antes de chegar à Espanha e voltar para a Inglaterra via Gibraltar, sendo o primeiro piloto aliado a fazer tal coisa.

Air Vice Marshall Basil Embry, na extrema esquerda, entre oficiais de inteligência e Estado-Maior.

 

De acordo com o esboço do planejamento apresentado ao comando da 2nd TAF, Embry estaria na cabeça do ataque, com Pickard como segundo no comando. Divididos em vagas de seis Mosquitos cada, os primeiros atacantes se lançariam inicialmente contra os muros externos e principais da cadeia, enquanto uma segunda onda atingiria os alojamentos dos guardas SS.

A fim de evitar mortes entre a população das redondezas, foi estipulado que o ataque deveria ser realizado a luz do dia, mais exatamente ao meio-dia, quando a maior parte dos alemães estariam reunidos no refeitório para o almoço, garantindo assim que o maior número deles acabasse atingido pelas vagas iniciais.

Esperava-se ainda que o poder das explosões derrubasse parte das paredes e o choque fosse bastante forte para estourar as fechaduras ou arrancar as portas das celas.

De acordo com os cálculos de Embry, as tripulações teriam de acertar pelo menos 48 bombas nessas três áreas prioritárias para permitir a fuga dos prisioneiros.

Quando o ataque estivesse terminado, um Mosquito equipado com câmeras de reconhecimento faria fotos da ação e seu piloto teria ainda a missão de decidir se as brechas abertas nos muros permitiriam a saída dos encarcerados.

Caso não fossem vistos prisioneiros saindo, este chamaria uma terceira onda de Mosquitos (voando 10 minutos mais atrás), que lançariam outras 24 bombas sobre os prédios da prisão, destruindo-a por completo.

Chegar até Amiens não seria grande problema. O objetivo estava a pouco mais de uma hora de voo das bases na Inglaterra, mas o mal tempo, a baixa visibilidade e possíveis nevascas poderiam interferir muito na necessária precisão.

Além disso, na região havia tropas inimigas, a sempre temida Flak (Flugabweherkanone ou artilharia antiaérea) e um esquadrão do temido Jagdgeschwader 26 (o 7./JG26), equipado com rápidos e manobráveis caças Focke Wulf 190A-8; se existia no arsenal da Luftwaffe uma aeronave capas de se bater contra o Mosquito, o Fw 190 era esse.

Visando atenuar este perigo, os Mosquitos deveriam ser protegidos por caças monomotores Hawker Typhoons do 198 e 174 Squadron, patrulhando a grande altura sobre a região de Amiens.

Por volta do dia 10 de fevereiro, com tudo praticamente pronto, Basil Embry recebeu a notícia de que de Leigh-Mallory o proibira de voar nessa missão.

Ele ainda tentou reverter a decisão, mas não houve jeito e o comando da Jericho acabou entregue a Pickard, não obstante sua experiência limitada em operações de nível baixo.

Na verdade, apesar de seu desejo de participar, Embry nunca poderia realmente fazê-lo, pois, sendo oficial superior, detinha informações que de maneira alguma poderiam cair em mãos dos alemães.

Além disso, naquela altura ele já sabia demais sobre as atividades clandestinas na França e possivelmente tinha algum conhecimento classificado com relação à invasão da Normandia. Este, porém, não era o único problema.

Tanto o Norte da França como a região da Hunsdon encontrava-se assoladas por tempestades de neve e os oficiais de meteorologia não podiam dizer com exatidão se o tempo melhoraria até a data limite da incursão, 18 de fevereiro.

Mesmo assim, no dia 14, Dominique Ponchardier foi avisado da eminência do ataque, mas sem, no entanto, lhe informarem a data certa, somente que se viesse a ocorrer seria ao meio-dia.

Sem perder tempo, o líder francês tratou de organizar patrulhas e colocar sentinelas ao redor da prisão, bem como colocou em funcionamento toda sua rede, estocando em pontos próximos roupas, viveres, medicamentos e um arsenal para o caso de terem de entrar na prisão e ajudar seus companheiros. Até bicicletas e documentos falsos foram providenciados, em alguns casos com ajuda das autoridades locais.

 

Imprevistos

Em 17 de fevereiro as condições climáticas continuavam marginais, mesmo assim, todas as folgas haviam sido canceladas, as tripulações continuavam mantidas em alerta e a segurança na base reforçada. Todos sabiam o que isso significava; algo importante estava próximo.

Com as execuções do encarcerados marcadas para começar dentro de menos de 48 horas, os dois oficiais superiores, acompanhados dos comandantes de esquadrão, decidiram que, apesar do tempo ruim, não poderiam mais postergar e, já na manhã seguinte, reuniram seus pilotos e navegadores para revelar pela primeira vez o objetivo de seu ataque, a cárcere de Amiens.

Um Mosquito é municiado com bombas de 500 libras semelhantes as usadas na Jericho.

Todos foram instruídos e as vagas de ataque começaram a deixar sua base poucos minutos antes das 11 da manhã.

Os primeiros a decolar foram os neozelandeses do 487 (RNZAF) Squadron, que deveriam derrubar os muros da cadeia, seguidos pelos australianos do 464 (RAAF) Squadron, os quais deveriam destruir as duas áreas destinadas aos guardas.

Na retaguarda deste esquadrão ia Charles Pickard, no Morquito HX-922/EG-F (F de Freddie), sempre acompanhado de seu inseparável navegador, o Flight Lieutnant “Bill” Broadley DFC, DSO, DFM.

Logo após viria um Mosquito B. Mk IV da Film Production Unit, pilotado pelo Flight Lieutnant Tony Wickam, e por último saíram as aeronaves do 21 RAF Squadron, que teriam a inglória obrigação, caso tudo falhasse, de destruir o edifício e matar todos dentro dele.

Segundo os aviadores comentavam, os comandantes de esquadrão teriam tirado a sorte para saber que ficaria com tal responsabilidade.

Ao contrario do que havia sido planejado anteriormente, não seria o piloto do avião de reconhecimento, um simples Flight Lieutnant (Capitão), o responsável por dar a ordem de transformar a prisão em escombros e sim Pickard, o único oficial sênior na operação.

Excetuando, obviamente, o avião de reconhecimento, todos os Mosquitos levavam munição completa para seus canhões e metralhadoras, além de duas bombas MC Mk.IV de 500 libras no depósito interno da fuselagem e outras duas do tipo SAP, também de 500 libras, nos suportes sobre as asas. Em ambos os casos, os artefatos estavam regulados para explodirem com um atraso de 11 segundos, evitando assim que o avião que viesse atrás fosse atingido por sua explosão.

 Sempre em condições climáticas muito ruins, a formação principal seguiu para o sul, devendo cruzar a linha costeira sobre Littlehampton.

Foi nessa altura que a decisão de manter a operação mesmo sob clima marginal começou a cobrar seu preço. Quatro dos doze Typhoons da escolta não lograram reunir-se a eles e quatro dos Mosquitos de Pickard haviam se desgarrado em meio à má visibilidade, tendo de abortar e retornar a Hunsdon, seguidos depois por um quinto, com problemas em um dos motores, o que acabou por deixar a força principal reduzida a nove aparelhos e a de reserva a apenas quatro, número que poderia ser insuficiente para completar a missão.

Estava previsto que outro esquadrão de Typhoon, o Nº 3 Squadron, deveria fornecer cobertura adicional sobre Amiens, mas seu comandante recusou-se a decolar naquelas condições climáticas.

Para evitar ao máximo uma detecção prematura, o cruzamento do Canal da Mancha, como de costume, foi realizado em alta velocidade e a escassos metros das ondas.

A altitude era tão escassa que um par de aeronaves chocou-se com aves ao se aproximar do litoral, por sorte, sem grande gravidade.

A entrada pela costa francesa foi por sobre a aldeia de Tocqueville-sur-Eu, nas proximidades de Dieppe.

Mas, antes de atingirem Amiens, os Mosquitos mudaram de direção, seguindo para o norte, rumo às proximidades de Doullens, para depois seguir a um ponto perto de Albert, a nordeste do alvo.

Com essa volta, os atacantes chegariam por sobre a prisão usando a pequena rodovia Albert-Amiens como referência. Durante todo o trajeto, a altitude mantinha-se tão baixa que era apenas suficiente para que as aeronaves não batessem contra os postes e árvores ao longo da estrada.

 

Rompendo as Muralhas

Em Amiens, Dominique Ponchardier e seus guerrilheiros, tal como vinham fazendo a alguns dias, encontravam-se posicionados, esperando a chegada das aeronaves aliadas; nas jornadas anteriores a espera fora frustrada pelo mal tempo, mas, naquele início de tarde, enquanto a velha catedral medieval ainda não terminara de tocar os sinos avisando o meio do dia, todos ergueram seus olhos para o céu na direção de onde podia se escutar perfeitamente o característico e já conhecido som dos motores Merlin britânicos.

Chegara a hora, todas as cartas estavam na mesa e não havia mais hipótese de recuo. 

Sobre a estrada, com Amiens e a prisão à vista, os pilotos baixaram ainda mais, literalmente “colando” no solo.

O então Pilot Officer Maxwell “Maxie” Sparkes, um dos neozelandeses da primeira vaga, piloto do Mosquito HX982/EG-T, contou em 2011 a uma equipe da BBC de Londres sua visão do que ocorreu naquela ação inicial:

“Voávamos a uma cota assustadoramente baixa, uns quatro ou cinco metros, se muito. Nunca havia estado nos comandos de um avião naquela situação e pensei que nunca mais queria ter de fazer aquilo… De minha posição, podia ver, perfeitamente alinhado, o estabilizador horizontal do primeiro Mosquito e, quando ele lançou suas bombas, também deixei cair as minhas. Sem o peso extra, o avião rapidamente ganhou velocidade, enquanto minhas bombas atingiam o muro. Nesse rápido instante, virei minha cabeça à direita e vi que estávamos ultrapassando a torre de vigilância no telhado do edifício principal. Devo ter passado a uns cinco metros dela e pude vislumbrar perfeitamente o rosto de um jovem guarda me olhando assustado. Meu navegador depois disse que passamos tão perto que viu que ele estava fumando um cigarro.”

Dramático instantâneo da hora exata na qual as bombas da primeira seção de Mosquitos atingem um dos muros da prisão. A fumaça que aparece não é das explosões, que ainda não haviam acontecido, e sim da poeira e terra levantadas pelo impacto dos artefatos.

Na ação descrita acima, três dos Mosquitos neozelandeses lançaram doze bombas sobre o muro sul, enquanto dois outros haviam se desviado antes de chegar ao objetivo, realizando um ataque diversivo contra a estação ferroviária da cidade, antes de também seguir rumo à prisão e atingirem seu muro norte.

Como seria de se esperar, nem todos os artefatos foram dar em seus alvos, indo explodir na neve fora da prisão, ao passo que pelo menos uma das bombas foi vista entrando pelo telhado do prédio principal.

A fim de escapar dos estilhaços das bombas dos neozelandeses, os australianos do 464 Squadron foram obrigados a demorarem dois minutos numa ampla volta sobre a área antes de se lançarem contra seus objetivos.

Dois deles atacaram novamente o muro sul, que parecia ainda intacto, com os dois restante jogando oito bombas sobre os alojamentos alemães. Uma dessas, pelo menos, foi vista levar pelos ares um dos alojamentos, matando ou colocando fora de ação grande parte dos guardas SS.

Ao mesmo tempo em que o ataque se desenrolava e imediatamente após seu final – entre 12:03 e 12:10 – no Mosquito da unidade de filmagem, o Flight Lieutnant Wickam e seu navegador/operador de câmera, o Pilot Officer Leight Haward, realizavam uma série de círculos sobre o alvo a 120-150 metros, fotografando e filmando os resultados.

Da posição privilegiada, puderam constatar uma grande violação no muro sul, várias brechas pequenas no lado norte e um enorme colapso onde os muros norte e oeste se encontravam.

Além disso, o lado oeste do prédio principal parecia bem danificado. Constataram ainda que um grande número de prisioneiros estava livre no pátio da cadeia, enquanto outros já se encontravam fora dos muros, correndo pela neve.

 

Liberdade

No interior da prisão, antes de escaparem e aproveitando que a maior parte dos guardas estavam mortos, feridos ou vagando desorientados pelos escombros, alguns dos membros da Resistência aproveitaram para invadir os escritórios da administração e queimar os registros dos prisioneiros, enquanto outros, munidos de uma faca, mataram um dos guardas e fizeram o mesmo com os arquivos da Gestapo.

A maior parte, no entanto, tratou de sair pelas brechas nos muros o mais rápido que puderam, se embrenhando nos bosques próximos ou correndo pelas ruas da cidade.

Em ambos os casos, homens e mulheres do grupo de Ponchardier os esperavam com roupas, comida e bicicletas; uma frota de automóveis movidos a gasogênio também os esperava e, nesse momento inicial, ajudaram todos a escapar, sem distinção.

Como escreveu um autor inglês, não havia criminosos comuns nem membros da Resistência fugindo dali, apenas franceses.

Uma criminosa conhecida liderou um grupo de fugitivos e invadiu uma loja local, pilhando as roupas ali vendidas, principalmente casacos e agasalhos pesados, depois levados aos demais ex-prisioneiros, ao passo que muitos dos guardas mortos dentro da prisão foram despojados de seus uniformes e armas, colaborando para o clima de total confusão por que passavam as autoridades responsáveis por conter a fuga.

Praticamente todos na cidade, alguns provavelmente sob ameaça, auxiliaram para esconder os fugitivos que não podiam ou não conseguiram ir para longe, desde casas particulares até um dos bordéis locais, comandado por uma cafetina conhecida na Resistência por enviar parte do dinheiro deixado pelos alemães em seu estabelecimento para financiar as atividades dos Maquis.

Dois desses, um sabotador e um falsificador de documentos, acabaram abrigados em uma igreja e, vestidos como monges, lograram atravessar a região sem serem percebidos pelas patrulhas alemãs.

Vários ainda acabaram abrigados em porões escondidos, onde já estavam ou estiveram famílias judias.

A família Poulain, proprietária de um pequeno hospital de Amiens, escondeu alguns no necrotério, enquanto outros receberam grandes curativos sobre suas cabeças, gesso nos membros e acabaram “escondidos” bem às vistas dos alemães na enfermaria de acidentados.

Obviamente, também ouve aqueles menos inventivos ou com menos sorte que foram capturados ou alvejados na tentativa de fuga e um pequeno grupo, liderado por um médico, que escolheu ficar para trás com os prisioneiros que haviam se ferido e para ajudar a escavam os que estavam embaixo dos escombros.  

Populares e membros da Resistência levam os corpos recém resgatados de Pickard e Broadley para Amiens.

 

O desaparecimento de Pickard

De acordo com testemunhas, os disparos do avião alemão atingiram o Mosquito na fuselagem traseira, fazendo com que a cauda se desprendesse.

O que restou do aparelho foi se espatifar num pequeno bosque, se incendiando a seguir, como vinha atrás da formação em fuga, ninguém viu o que ocorreu, somente notando a falta dos dois oficiais quando os demais retornaram às ilhas britânicas. O “F de Freddie”, entretanto, não seria a única perda do dia.

Enquanto se afastava de Amiens, rumo à costa, por volta das 12:10, o Mosquito MM404/SB-T – tripulado pelo Squadron Leader Alexander lan McRichie, comandante de esquadrilha no 464 Squadron, e seu navegador, o Flight Lieutnant Richard W. Sampsom, foi visto deixar a formação e virar a estibordo, perdendo altura para depois desaparecer. A aeronave havia sido atingida no cockpit pela Flak ligeira, provavelmente ainda perto do objetivo.

Sampsom foi quase certamente morto de forma instantânea e McRichie, muito ferido, ainda conseguiu realizar um pouso forçado sobre um campo coberto de neve em Freneuville, nas proximidades de Dieppe, somente para ser feito prisioneiro dos alemães.

Levado a um hospital, se constatou que havia nada menos que 26 ferimentos em seu corpo. Pelo menos mais três Mosquitos sofreram avarias causadas por fogo antiaéreo, mas todos conseguiram retornar.

Mapa mostrando o curso do HX922 de Pickard em seus momentos finais, realizado pela RAF com auxílio de testemunhas no solo.

 

Um resgate épico

As tomadas e fotografias de reconhecimento colhidas da área da prisão, bem com os depoimentos das tripulações, indicavam para a RAF que a Jericho fora um retumbante sucesso; No entanto, os detalhes do que ocorrera a Pickard, Broadley e aos detentos libertados naquele gélido início de tarde de fevereiro de 1944 somente começou a ser desvendado depois dos desembarques do Dia-D.

Em setembro daquele ano, quando as tropas aliadas já haviam libertado Amiens, Basil Embry enviou a França um de seus oficiais, o Squadron Leader Edwin Houghton, que finalmente esclareceu, se bem que em parte somente, os fatos ocorridos.

Dos 717 detidos que se encontravam no interior dos muros da prisão em 18 de fevereiro de 1944, estima-se que 258 lograram escapar, mas apenas cerca de um quarto deles participavam da Resistência.

O restante eram criminosos comuns, na maior parte de baixa periculosidade, os quais seriam quase todos recapturados depois. Mesmo entre os membros da Resistência, muito mais cuidadosos e com mais meios, o índice de recaptura se mostrou alto.

Uma das brechas usadas pelos prisioneiros para fugir de Amiens.

 

Igualmente alto foi o preço pago para que estes escapassem.

Os Mosquitos foram realmente muito eficientes em abrir as brechas nos muros de tijolos e na eliminação dos guardas alemães (vinte morreram e mais de 70 acabaram feridos), mas suas bombas também atingiram o prédio dos cárceres, provocando muitos danos, principalmente na ala norte, a qual acabou totalmente destruída.

Cento e dois prisioneiros pereceram nos escombros ou mortos pelos alemães quando tentavam fugir e outros 74 acabaram feridos.

Na Inglaterra, Pickard e Broadley, tinham sido dados como desaparecidos, uma vez que não apareciam nas listas de prisioneiros de guerra da Cruz Vermelha, e qualquer esperança que estivessem vivos, escondidos com a Resistência, veio por terra quando os britânicos descobriram duas sepulturas com seus nomes no velho cemitério de Saint Pierre, no lado nordeste de Amiens.

O Mosquito deles havia caído a apenas sete milhas da cidade e os habitantes das proximidades correram para o local. Usando longos pedaços de madeira, tentaram puxar seus corpos dos escombros em chamas, mas acabaram impedidos pelas labaredas e pelas munições que começavam a detonar em meio às chamas.

Só mais tarde conseguiram recuperar os restos muito queimados de ambos e leva-los ao cemitério de Saint-Gratien, onde foram enterrados em covas simples.

A fim de não chamar a atenção dos alemães, uma moradora teve o cuidado de retirar todas as identificações do que restou de seus uniformes, os quais, depois da libertação, foram remetidos aos familiares.

Posteriormente, os alemães retiraram os corpos e os levaram para Saint Pierre, onde estão ainda hoje.

Muito tempo depois do Dia-D, membros da Resistência, senhoras e familiares dos prisioneiros libertados ainda levavam flores para colocar junto a suas lapides.

O ataque a prisão em Amiens chegou ao conhecimento da opinião publica na França Ocupada pouco depois de haver ocorrido, quando do enterro coletivo dos oitenta e sete detentos mortos em consequência das explosões e desmoronamentos, um evento cuidadosamente orquestrado pelos colaboracionistas e amplamente coberto pela imprensa local, obviamente controlado pelos serviços de informação dos nazistas, que o chamou de um crime sem precedentes.

Os britânicos, entretanto, só tomaram conhecimento dela em outubro de 1944, não por acaso depois que se comprovou seu sucesso.

A derradeira missão de Charles Pickard e Broadley passava para a história como um dos mais ousados resgates da Segunda Guerra Mundial

 

Conexão Overlord

Qualquer par de linhas sobre a Jericho não estaria completa se não fosse mencionada as grandes controvérsias e implicações que a rodeiam.

Novos trabalhos de pesquisa divulgados em anos recentes, tanto na França quanto na Inglaterra, afirmam que os prisioneiros de Amiens, bem como os aviadores que arriscaram ou deram suas vidas para o sucesso da operação, nada mais foram que meros peões ou danos colaterais em um jogo estratégico e político envolvendo a Operation Overlord, desencadeada quatro meses depois, com os desembarques aliados nas praias da Normandia, o emblemático Dia-D.

Entre outros, os principais defensores desta tese são o historiador francês Dr. Jean-Pierre Ducellier e seu companheiro de estudos, o inglês Simon Parry, que dividem a autoria do livro “Amiens Raid: Secrets Revealed”, lançado pela editora Red Kite, no ano de 2002.

Comandos britânicos desembarcam na Normandia.

 Ducellier passou anos estudando a ação, entrevistou vários dos envolvidos e revirou os arquivos britânicos e franceses atrás de documentação oficial sobre as verdadeiras justificativas para o arriscado raid e, mesmo assim, jamais conseguiu estabelecer quem ordenou a operação.

Como tinha relação com a Resistência na França, esta deveria ter sido demandada, em teoria pelo menos, por pessoal do SOE (Special Operation Executive), que geria o auxílio direto às atividades clandestinas na Europa Ocupada; porém, o Coronel Maurice Buckmaster, dirigente da seção francesa do SOE, sempre negou o envolvimento de sua organização.

Além disso, o historiador francês, que foi por anos muito próximos a dirigentes importantes da Resistência, é categórico em dizer que ninguém na França teria pedido tal ação.

O próprio Squadron Leader Edwin Houghton, que investigou in loco a operação, nunca logrou determinar com segurança se fora Dominique Ponchardier quem realmente a pediu; conseguiu, entretanto, estabelecer que nenhuma execução estava marcada para aquele dia em Amiens e que nenhum agente importante dos serviços de inteligência estavam ali encarcerados, pelo menos não naquele período.

 Mas então de quem seria a ideia inicial do raid e qual o seu motivo?

Para os defensores das teses comentadas no início desse subtítulo, a resposta é fácil: A Jericho foi parte de algo bem maior e mais importante, a chamada Operation Fortitude, o gigantesco esforço aliado para enganar o Alto Comando Alemão acerca da localização da invasão à Fortaleza Européia de Hitler.

Isto porque Amiens ficava a pouco mais de uma hora de Pass-de-Callais, justo o local que os alemães julgavam ser o mais propício para os desembarques das tropas aliadas.

Alem disso, de acordo com o que se descobriu recentemente, os Maquis franceses só souberam que algo estava para ocorrer quando receberam apelos de Londres para reunir informações e depois, já quando a operação estava para acontecer.

Nesta foto de reconhecimento o dano na parede norte é visível na parte inferior direita. Também pode-se ver os grandes estragos nas edificações internas.

É certo que uma operação daquela magnitude na região certamente chamaria a atenção dos comandantes alemães e colaboraria para que tropas e armas ali fossem concentradas; mas, se a Operation Jericho realmente estava destinada a salvar os patriotas da Resistência ou tinha simples objetivo de engodo, vai permanecer, provavelmente para sempre, como um dos muitos mistérios relacionados às operações secretas na Europa Ocupada.

Todavia, seja qual for a motivação ou versão que se queira levar em conta, uma coisa é incontestável, a coragem e a habilidade das tripulações dos Mosquitos e o espírito de luta dos guerrilheiros da Resistência Francesa.


Sobre Andre Almeida

Ex-militar do exército, psicólogo e desenvolvedor na área de TI.Sou um entusiasta acerca da Segunda Guerra Mundial e criei o site em 2008, sob a expectativa de ilustrar que todo evento humano possui algo a ser refletido e aprendido.

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