Brasil na Segunda Guerra – A Desmolização Relâmpago da FEB

A DIÁSPORA DA FEB, O ABANDONO DOS PRACINHAS

A apressada desmobilização da FEB foi matriz geradora de uma série de problemas. Na opinião do Major João Felipe Sampaio Barbosa, em estudo sobre o assunto, seus reflexos se fizeram sentir na expressão do poder nacional, e particularmente nos campos político, psicossocial e militar.

No campo econômico as consequências foram poucas ou nenhuma. A economia feita com a manutenção da tropa, argumento usado tanto para recusar o uso da FEB como tropa de ocupação em território estrangeiro, como para justificar sua rápida desmobilização, não se fez sentir de maneira apreciável. A despesa foi eliminada do orçamento, mas em contrapartida nunca se quantificou o que de benefícios haveria nos campos estratégico e social, se a política adotada fosse outra. O benefício que se esperava com a integração da força disponível, em consequência do licenciamento da tropa, não ocorreu.

A desmobilização imediata não permitiu um planejamento adequado para tirar melhor proveito da nova força de trabalho que retomava ao mercado. Pelo contrário, a dispensa, como foi feita, veio criar problemas de toda ordem, sobretudo psíquicos, o que inutilizou muitos dos componentes desses contingentes, que passaram à condição de inadaptados à vida civil, transformando aqueles que seriam elementos de produção em ônus para a sociedade. Toda a tropa que se desmobiliza após uma guerra tem dois problemas fundamentais: a readaptação e o amparo psicossocial e material. Nada disso foi feito a tempo quando da desmobilização da FEB.

Febiano dando assistência a criança italiana

O povo brasileiro não foi preparado adequadamente; o soldado não foi esclarecido de como deveria proceder para se readaptar ao dia-a-dia e o povo não foi informado como deveria recebê-lo. Recepção triunfal, como ocorreu na chegada da tropa, não significa que exista um preparo psicológico da coletividade para receber em seu meio, homens possivelmente portadores de neuroses ou de síndromes que evoluíram para uma inadaptação à vida civil. Festa é uma manifestação lúdica.

Saber receber um ex-combatente de forma a facilitar sua reintegração é uma questão de conscientização. Isso não houve, não por culpa do soldado ou do povo, mas por falta de planejamento, por falta de uma política realista para enfrentar esse difícil e delicado problema. Imediatamente após o desembarque, o soldado era licenciado. Ofereciam-se todas as facilidades para que o desligamento fosse rápido e sumário, sem maiores entraves administrativos.

O ex-combatente recebia seu certificado de serviço militar impresso na Itália. Não deixa de ser um aspecto curioso: em meio a tanta falta de planejamento, esse documento indispensável para que se efetuasse a desmobilização foi confeccionado no local que, nas vésperas, havia sido palco de batalhas, e os homens que iam receber esse certificado ainda ocupavam militarmente o território onde o certificado fora impresso.

Os oficiais, militares e profissionais, desembarcaram após breve licença, com ordens para irem servir em pontos mais diversos. Todas essas transferências tiveram uma constante: o curto prazo para seu cumprimento.

O Coronel Da Camino, um oficial superior que comandou o II Grupo de Artilharia em toda a campanha da Itália, ao regressar recebeu ordens para se apresentar na guarnição de Santiago, no Rio Grande do Sul, seu novo posto, dentro do prazo de 10 dias. Esse exemplo serve para demonstrar que a ordem de dispersão da FEB atingia indiscriminadamente a todos, não importando o posto.

Essa diáspora teve seu lado positivo: os oficiais levaram, para onde iam servir, o espírito da FEB. Como eram em menor número no corpo de oficiais do Exército, passaram a sofrer os problemas de aceitação, fenômeno comum a qualquer tipo de minoria. Houve atritos, decepções e mesmo frustrações, e muitos oficiais requereram transferência para a reserva, cortando suas carreiras. As incompreensões provocaram na tropa divergências sobre os aspectos da disciplina militar. Mas o tempo começou a agir, e aos poucos passou a haver melhor aceitação das ideias preconizadas pelos oficiais que participaram da FEB.

Qual sorriso ao retornar para o lar?

Assim, modificou-se a disciplina que deixou de ser a imposição de uma disciplina drástica para dar lugar à compreensão e ao entendimento, sem que houvesse quebra da hierarquia e do respeito ao superior. Por outro lado, costumes tradicionais no Exército brasileiro permaneceram convivendo com a nova mentalidade que surgiu. Esses conceitos, princípios e ideias amalgamaram-se para resultar no Exército de hoje: uma corporação diversa da existente no começo da Segunda Guerra Mundial.

Apesar desse fenômeno, os valores humanos inerentes aos oficiais que fizeram a campanha da Itália acabaram se fazendo valer, mas no campo do aprendizado e do treinamento da tropa muito foi perdido. Após a Segunda Guerra Mundial, o Exército começou sua reestruturação tendo como base as Grandes Unidades. Com a desmobilização repentina da FEB, desmobilizou-se também a única Grande Unidade que tinha experiência de combate – a 1ª DIE, organizada pelo Exército com imenso sacrifício -, dispersando-se seus elementos.

Essa diáspora atingiu mais fundo os “pracinhas”, soldados e sargentos convocados ou voluntários, todos os que não pertenciam à carreira militar. Excluídos do Exército, por força da desmobilização, tiveram assim cortados todos os vínculos com o Exército. Para esses a situação tornou-se muito mais dura. Com algum dinheiro no bolso, sem nenhuma orientação, o ex-combatente ia ao encontro da família. No entanto, como muitos que foram desmobilizados no Rio eram oriundos de outros Estados, não regressaram de pronto aos lugares de origem, saindo em busca de novas aventuras. Esgotando os poucos recursos que economizaram, tiveram de enfrentar a realidade do cotidiano.

A ruptura foi brusca. Esses homens passaram longo tempo no Exército, que os alimentava, vestia e cuidava da saúde, tendo somente como dever e preocupação o cumprimento da missão recebida. Passaram de um ambiente de ordem hierárquica para outra vida completamente diferente, e logo constataram que arranjar um emprego não era coisa fácil. Retomar ao emprego antigo, em inúmeros casos, também era impossível: o lugar estava preenchido. A falta de esclarecimento fez com que muitos empregadores recusassem emprego a ex-combatentes. Existia o preconceito de que todos eram portadores de neurose de guerra e, portanto, incapazes de realizar, de forma útil, as tarefas inerentes ao emprego desejado.

Passados mais de 40 anos, essa situação tem hoje aspectos tão estranhos que até custa a crer que tenha havido tal rejeição. Mas ocorreu com uma frequência bem acima de qualquer estimativa. No caso dos cabos e sargentos especializados o procedimento foi idêntico. Não houve nenhum esforço para reter esses homens, cujos conhecimentos adquiridos em campanha, se úteis ao Exército, pouca aplicação tinham na vida civil. Com esse procedimento, a grande oportunidade de utilizar a FEB como núcleo de treinamento do Exército brasileiro foi total e irrecuperavelmente perdida. O alarido que ocorreu por ocasião do regresso acabou se tomando um eco distante.

De heróis festejados, passaram a ser homens comuns, tendo que concorrer com os demais, em pé de igualdade. Os mais aptos e fortes prosseguiram, enquanto os mais fracos e inadaptados, sem receberem qualquer ajuda, não conseguiram superar os obstáculos. Muitos dos portadores de neurose ou de qualquer outra forma de inadaptação à vida civil sucumbiram antes de receberem a ajuda de que tanto necessitavam.

Em 1950 houve uma manifestação de ex-combatentes, em forma de parada: Desfile do Silêncio, foi o título. Cerca de dois mil ex-combatentes desfilaram da sede da Associação de Ex-Combatentes até a Câmara dos Vereadores. Desse desfile fizeram parte mutilados, doentes e muitos carentes de recursos. A parada comoveu a opinião pública, mas conseguiu pouco resultado prático, pois o ato, que devia ser um brado de protesto, transformou-se também numa manifestação de acentuada conotação político-partidária. A situação servia perfeitamente aos políticos demagogos para arrecadarem dividendos, procurando estender e ampliar os benefícios realmente devidos aos ex-combatentes a outros, de forma às vezes indiscriminada.

Em seu trabalho sobre o problema de desmobilização da FEB, o Major Sampaio Barbosa fez a denúncia: “As discussões em tomo da reivindicação dos expedicionários colocaram em risco o equilíbrio disciplinar do Exército”, tudo fruto do afã dos políticos e parlamentares, desejosos de aproveitarem o problema, complexo e doloroso, para tirar resultados políticos a seu favor. Como consequência, resultou uma legislação caótica, excessiva em alguns pontos, escassa ou inexistente em outros e, sobretudo, pouco prática.

O jornal O Globo, no mês de setembro de 1957, publicou uma série de reportagens de autoria do jornalista José Leal, com farto material fotográfico feito pelo fotógrafo José Peter. Está relatada com precisão e abundância de detalhes uma série de casos dolorosos, consequência dessa diáspora da FEB. Expurgando algum sensacionalismo, natural nesse tipo de reportagem, encontram-se perfeitamente registrados os casos de neurose, de inadaptação à vida civil normal e do sofrimento de alguns “pracinhas” que, tendo servido à Pátria, viviam completamente à margem da sociedade. Essa série -“O Outro Lado da Glória” – dá bem a medida do problema da época, e serve como registro de eterna incúria e despreparo com que são tratados os problemas sociais do Brasil.

Após um tempo as histórias dos Ex-combatentes perderam a graça e ninguém mais se interessou, ninguém mais quis ouvir o que eles tinham a dizer…

Ninguém retratou melhor essa situação, de forma sóbria, mas candente, que o General Raul da Cruz Lima Júnior, que fez a guerra como tenente, em seu livro Quebra Canela: “As neuroses de guerra tiveram as manifestações mais extravagantes, em grau maior ou menor, naqueles organismos que sofreram, diretamente, os horrores da guerra. Com o passar do tempo, todavia, as marcas foram desaparecendo e a vida se normalizando. Uma pequena parcela foi para os hospitais psiquiátricos. Outra, após uma temporada em hospitais, foi devolvida à vida comum, porém em estado precário. Não obstante as medidas tomadas, a sociedade brasileira não teve condições de absorver estes homens, e não é surpresa encontrar ainda um pracinha perambulando pelas ruas, como o filho esquecido pela Pátria.”

O quadro político vigente na época em que a FEB retomou foi o fator principal e talvez único que determinou essa desastrada decisão de desmobilização. Concluiu o Major Sampaio em seu trabalho: “A dissolução da FEB foi um ato de caráter essencialmente político, cujos efeitos foram desastrosos para o aprimoramento do Exército.”

O Exército é uma corporação baseada na honra, no cumprimento do dever e no respeito às tradições. Os problemas trazidos com essa política de desmobilização da FEB foram superados; o vendaval de origem política que determinou essa medida cessou de existir e a corporação, através do seu corpo de oficiais, febianos ou não, soube aperfeiçoar a força terrestre.

O espírito da FEB inegavelmente muito contribuiu. Esses episódios pertencem ao passado, mas merecem um estudo profundo, que extrapola os limites deste trabalho. Há lições a serem tiradas, é tão importante o planejamento de uma desmobilização quanto o da mobilização. Um não pode dispensar o outro, para evitar que a desmobilização, feita sem preparo, desperdice os frutos conseguidos com a mobilização.

“A FEB por um Soldado”
Joaquim Xavier da Silveira

Assista o Documentário: FEB – Heróis Esquecidos
Filme que retrata o heroísmo dos soldados, assim como o abandono ao retornar para o Brasil

 

Parte 1 – Viagem para a Itália

 

Parte 2 – Monte Castelo

 

Parte 3  – Montese

 

Parte 4 – Rendição da 148ª DI

Sobre Andre Almeida

Ex-militar do exército, psicólogo e desenvolvedor na área de TI.Sou um entusiasta acerca da Segunda Guerra Mundial e criei o site em 2008, sob a expectativa de ilustrar que todo evento humano possui algo a ser refletido e aprendido.

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1 comentário

  1. Jorge Elias Goursand Araujo

    Tamanho desprezo pelos ex-combatentes, tanta amargura vendo discriminação , vendo desertores promovidos a generais, com suas viúvas recebendo indenizações grandes , pensões de oficiais generais , ( De acordo com a constituição,todos são iguais perante a Lei, mais só que a discriminação é tão grande tão alarmosa, porque..?
    Grandes herois, que realmente participaram do FRONT porque não promover esses herois ao posto máximo de acordo com a constituição ( sem discriminação ), SE DESERTORES, BANDIDOS ASSALTANTES DE BANCOS, ASSASINOS , SÃO PROMOVIDOS A OFICIAIS GENERAIS, PORQUE NOSSOS HEROIS DO FRONT SÃO ESQUECIDOS, SÃO MENOSPREZADOS, PORQUE…..?

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