Bebita Hodgkiss – A Saga de uma Brasileira na RAF

Bebita Hodgkiss – Quando estamos pesquisando a Segunda Guerra Mundial, a cada dia descobrimos coisas novas e interessantes, principalmente sobre a participação de Brasileiros no conflito.

O Brasil na guerra não se resume só na FEB, FAB e Marinha, nós tivemos algumas dezenas mais de voluntários lutando por diversos países da Europa.

Se a história dos voluntários anglo-brasileiros que voaram pela Royal Air Force (RAF) durante a Segunda Guerra Mundial é praticante desconhecida, muito menos divulgado é o fato de que um seleto grupo de moças, na maior parte filhas ou netas de britânicos radicados no Brasil, seguiram para o mesmo destino, ingressando no corpo feminino dessa força, o Women’s Auxiliary Air Force, ou simplesmente WAAF, como era mais comumente conhecido.

Por isso, foi com grande alegria e entusiasmo que logramos contato com o senhor Lauriston James Hodgkiss, cujos pais, ambos nascidos no Brasil, se voluntariaram para a RAF em 1942. Seu pai, o Comendador James Hall Hodgkiss, foi instrutor de bimotores e planadores Horsa, voou bimotores DeHavilland Mosquito no Coastal Command e terminou a guerra como piloto de testes no Airborne Forces Experimental Estabeblishment.

Já sua mãe, a carioca Lilian Helene Louise Hodgkiss, conhecida por todos como Bebita, foi uma WAAF e serviu na seção de meteorologia da RAF. Esta é sua história:

Bebita Hodgkiss
Lilian Helene Louise Hodgkiss (Arquivo Lauriston James Hodgkiss) Colorização feito pelo amigo Reinaldo Elias.

Filha do escocês John Armstrong Read, alto funcionário da holding canadense Brazilian Traction Light and Power Co., empresa que tinha a concessão dos serviços de geração e distribuição de energia elétrica e das linhas de bondes elétricos da então capital federal, ela nasceu no Rio, em 16 de março de 1919.

O apelido “Bebita”, pelo qual gostava de ser chamada, foi dada por uma babá espanhola. Igual a outros filhas e filhos de britânicos radicados no Brasil, teve uma infância privilegiada para os padrões nacionais da primeira metade do século XX, realizando o curso ginasial no Reino Unido.

Nesse período, a cada seis meses, durante as férias escolares, a família toda viajava pela Europa, tendo ela conhecido a Itália, a antiga Checoslováquia e a Áustria, entre outros.

Bebita Hodgkiss conheceu seu futuro marido no Rio de Janeiro, e juntos apresentaram-se ao consulado britânico como voluntários para a guerra.

No início de 1942, junto ao noivo James Hodgkiss, ela parte para a Inglaterra, casando em Londres, no dia 23 de março, logo após seu 23 Aniversário.

No mês seguinte, ambos começaram seu treinamento na RAF.

Enquanto seu marido é selecionado para treinar como piloto no Canadá, ela, como qualquer voluntária da WAAF, apresentou-se a um Recruit Depot, onde passou por um período de sete a dez dias de reconhecimentos médicos regulamentares, inoculações e vários testes e avaliações para indicar a função mais adequada a suas aptidões.

Seguiu-se então três semanas corridas de formação básica, incluindo treinamento físico, regulamentos e outros elementos do serviço, sendo que, após o final de tal período, as recrutas eram enviadas, segundo suas aptidões, para a formação especializada, que poderia durar de um até sete meses, dependendo da complexidade do trabalho.

Bebita Hodgkiss deve ter impressionado os avaliadores com seus conhecimentos em números ou ciências, pois estas eram justamente as aptidões requeridas para as WAAFs designadas para a função de assistente de meteorologia.

 

Bebita Hodgkiss e a WAAF

Apesar de haver existido uma organização feminina na RAF entre 1918 e 1920, o corpo conhecido como Women’s Auxiliary Air Force, surgiu oficialmente só em 28 de junho de 1939.

Inicialmente, as voluntárias da WAAF foram recrutadas para preencher cargos como secretárias, ajudantes de cozinha, telefonistas e motoristas, a fim de liberar os homens para funções na linha de frente.

No entanto, com o avanço da guerra, as funções preenchidas pelas auxiliares femininas foram se diversificando e logo elas também se transformaram em telegrafista, operadoras de rádio, decifradoras de códigos e até especialistas em armamento e mecânicas de aeronaves, entre outras funções.

Alguns dos trabalhos de maior importância desempenhado pelas WAAFs, era a operação dos balões de barragem contra bombardeiros e a função de operadoras dos sistemas de controle por radar, notadamente durante os meses críticos da Batalha da Inglaterra.

Bebita Hodgkiss
Bebita a direita na foto (Arquivo Imperial War Museum)

Voluntárias com habilidades específicas serviram igualmente ao Special Operation Executive (SOE) e foram treinadas como espiões, operando na França em outros cantos da Europa ocupada, principalmente como especialistas em comunicações.

Havia ainda um serviço de enfermagem da RAF, o Princess Mary’s Royal Air Force Nursing Service, e mais de 150 mulheres prestaram serviço como pilotos no Air Transport Auxiliary (ATA), que tinham a função de transladar aeronaves das fábricas até as bases aéreas dentro da Grã-Bretanha.

Na verdade, as integrantes do ATA nunca foram consideradas parte integrante da WAAF e sim civis contratadas, pois a RAF pensava ser inaceitável seus quadros femininos voarem aeronaves militares.

Por volta de 1943, a Women’s Auxiliary Air Force reunia mais de 18 mil integrantes, um bom número delas atuando fora das ilhas britânicas.

 

Bebita Hodgkiss – Em serviço

Finalizado seu treinamento, a agora Aircraftwoman Hodgkiss foi designada para prestar serviço no Escritório Central de Previsão da RAF, uma instalação meteorológica de alta segurança, localizada na pequena cidade de Dunstable, em Bedfordshire, a apenas 35 milhas de Londres, onde eram recebidas, analisadas e despachadas todas as previsões climáticas da Europa, imprescindíveis no planejamento de qualquer operação aérea aliada.

O filho Lauriston conta um episódio inusitado ocorrido com ela em Dunstable:

“…quando ela estava esperando a vinda de um desses relatórios, que era de bastante importância às operações da noite, sendo que o Comandante chegou detrás dela e perguntou se o relatório x já tinha chego. Ela, ja cansada de responder que ainda não, disse, sem virar a cabeça: “Não! E você sabe o que fazer com ele!!”, pensando que era um colega. O Comandante sorriu e saiu de fininho, mediante um silencio ensurdecedor. Só depois, minha mãe quase infartou em saber quem estava atrás de sua cadeira.”

tempo em terras britânicas durante a guerra, como a descrita abaixo:

Instalações do Escritório Central de Previsão da RAF em Dunstable (Arquivo Anderson Subtil)

“Ela recordava que enquanto na WAAF, ao entrar num trem, ao ver outra pessoa uniformizada, ia ter conversa com essa pessoa.
Num desses episódios, quando da invasão da Sicília/Itália, ela entrou num trem e deu com um capelão militar.
Todos os capelães, respectivamente de sua denominação religiosa, era chamado de Padre. Então, ao sentar ao lado deste capelão, ela perguntou se ele havia encontrado muitos ateus durante o seu ministério em campo de batalha, ao que ele respondeu que nenhum, pois o soldado alvejado mortalmente, nos seus momentos derradeiros, sempre chama por Deus.  Nunca esqueci desta história.”

Em abril de 1943, mais precisamente no dia 10, a já Leading Aircraftwoman (LACW) Hodgkiss recebe ordens de deixar momentaneamente suas funções em Dunstable e se apresentar en Hendon, uma Air Station da RAF em Londres, a fim de tomar parte, junto a autoridades brasileiras e britânicas, da cerimônia simbólica de incorporação à RAF de dois caças Supermarine Spitfire Mk. Vc adquiridos com recursos doados pelos membros da The Fellowship of the Bellows Brasileira.

Entre as personalidades reunidas para o evento encontravam-se o embaixador do Brasil no Reino Unido, o diplomata José Joaquim Lima e Silva Moniz de Aragão, o Ministro do Ar inglês, Sir Archibald Sinclair, e algumas altas patentes da RAF.

Além dela, também representavam o Brasil na cerimônia outra brasileira, a LACW Jean Clark e o curitibano Cosme Lockhood Gomm, famoso piloto de bombardeiro, oficial comandante do 467 (RAAF) Squadron.

Bebita Hodgkiss
Cartaz de recrutamento da WAAF (Arquivo Anderson Subtil)

Em setembro do mesmo ano, ávida por rever depois de tanto tempo o marido, que acabara de retornar à Inglaterra, ela tenta entrar em contato por telefone com o hotel indicado por ele, resultando em outro episódio inusitado, descrito assim em seu diário:

…na minha ignorância, achava que Harrogate era um subúrbio londrino e pedi a telefonista que me desse o número do hotel onde Jimmie estava. Ela me informou que Harrogate ficava em Yorkshire, no norte da Inglaterra, e que o Queen Hotel havia sido requisitado pela RAF e portanto o número que eu queria era restrito… Falei que meu marido acabava de chegar de além-mar. Li o telegrama em voz alta e contei-lhe que não o via a um ano, etc, etc. Mandou que eu desligasse e ficasse esperando o retorno, embora isso fosse contra todos os regulamentos, por se tratar de um número restrito e “por favor, nunca faça mais isso!”…

Finalmente uma voz de homem atendeu e eu pedi para que chamasse o P/O Hodgkiss. A voz me informou com rispidez que oficiais não eram permitidos receber chamados particulares naquela linha.

Comecei a esquentar e pensando que estava falando com algum cabo antipático de plantão, lembro-me ter dito, “pois ao diabo com sua burocracia imbecil! Pelo menos não daria para você transmitir um recado à ele – POR FAVOR?!”

Mais uma vez a sorte me favoreceu e apesar do tom resignado, a voz falou: ‘pois bem’, me dê o nome e a patente dele e tomarei providencias para que receba o seu recado.” E foi esta a razão pelo qual, quando Jimmie entrou no refeitório daquela noite, entre as ordens afixadas na prancha de recados, havia um que dizia: “Mensagem para P/O James Hodgkiss. Esposa manda dizer para ir à Dunstable”.

Estava assinado pelo Oficial Comandante RAF Harrogate.”Em setembro do mesmo ano, ávida por rever depois de tanto tempo o marido, que acabara de retornar à Inglaterra, ela tenta entrar em contato por telefone com o hotel indicado por ele, resultando em outro episódio inusitado, descrito assim em seu diário:

 

Bebita na Escócia

No ápice do inverno londrino de 1943, a umidade e o frio da capital inglesa foi demais para a saúde da jovem e ela contraiu uma pneumonia.

Por isso, como acontecia geralmente em casos de doenças mais graves ou gravidez, precisou se afastar de seus deveres para tratamento.

Bebita Hodgkiss ainda passou pelo Wartime Broadcasting Service da famosa emissora BBC de Londres, mas, por recomendação médica, acabou deixando a WAAF e indo para a Escócia, onde o clima seco ajudaria muito em seu restabelecimento.

O casal se instalou em Fochabers, uma pequena aldeia na paróquia de Bellie, em Moray, norte da Escócia, às margem do rio Spey, onde alugaram de uma simpática viúva local uma construção do século XVI, com grossas paredes de pedra e lareiras em todos os cômodos.

Uma particularidade desta localidade, é que ali havia um campo com mais de mil prisioneiros de guerra italianos, todos capturados na África do Norte, que eram guardados por um único sargento, o qual se limitava a apenas fechar à noite o portão do campo e voltar a abri-lo pela manhã.

Não por acaso, a melhor comida da região era encontrada lá.

Curiosamente, nas frequentes arrecadações de fundos para os esforços de guerra, eram justamente os prisioneiros os que mais colaboravam.

Enquanto James Hodgkiss prestava serviço como instrutor na Inglaterra, Bebita permaneceu pelo resto da guerra no norte da Escócia.

E foi naquela parte das ilhas britânicas, em 9 de abril de 1945, que Bebita deu a luz a um menino, o primeiro filho do casal, batizado, por sugestão do marido, com o nome de John Francis.

Segundo um telegrama enviado por ela a James, então baseado em Fairford, o parto foi realizado às 23:10hs, em um hospital de Forres, a 35 km de Fochabers, pelo Dr. John Adams, um médico recém liberado do Royal Army Medical Corps (R.A.M.C).

O casal permaneceu no Reino Unido até meados de 1946, quando James Hodgkiss foi dispensado da RAF. Novamente no Brasil, eles se instalaram em São Paulo, onde Lauriston James Hodgkiss nasceu.

Além de cuidar da família, Bebita se dedicou as atividades jornalísticas, tendo editado por muitos anos o informativo mensal da São Paulo Women’s Club.

Posteriormente, na década de 1970, quando a família mudou-se para Mairiporã, passou a escrever para o jornal local e, nos anos 80, também publicou na Revista do Caminhoneiro.

Lilian Helene Louise Hodgkiss viveu seus últimos dias de forma feliz, mas ausente numa clínica especializada em Alzheimer, na cidade paulista de Atibaia, onde veio a falecer aos 11 de novembro de 2001.  

Seu corpo encontra-se sepultado no Cemitério da Paz, no Morumbi, junto a seu esposo e seu primeiro filho.

Agradecimentos: Os pesquisadores Anderson Subtil, Carlos Motta e Ricardo Lavecchia gostariam de agradecer a atenção do senhor Lauriston James Hodgkiss pela inestimável ajuda, sem a qual este trabalho nunca seria possível.

 

Por: Carlos Motta e Ricardo Lavecchia

Ricardo Lavecchia

Desenhista, Ilustrador e pesquisador sobre a Segunda Guerra Mundial

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