Da região de São João Del Rei, 3258 pracinhas do 11° RI integraram a Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial. Quando retornaram, foram recebidos com as mais efusivas comemorações, versões locais de manifestações como as do Rio de Janeiro. Cada uma de suas casas ostentava orgulhosamente um cartaz: “Daqui saiu um expedicionário!”.
Mas, se os pracinhas, entusiasmados com a calorosa recepção, imaginavam que os dias penosos se transformariam em uma vaga lembrança, logo se deram conta do engano. Aqui mesmo, em solo brasileiro, outra guerra começava – a luta pela sobrevivência.
Neste combate esteve meu pai, Francisco Pedro de Resende, que me revelou, numa conversa emocionada, o “terrível sacrifício e tremenda injustiça” que enfrentou no pós-guerra. Seu relato é um emblema daquilo que aconteceu com boa parte dos nossos pracinhas.
Poucos dias após o desembarque no Brasil ele, entre tantos outros, já estava “abandonado à própria sorte”. Em função de sua baixa escolaridade, meu pai foi logo licenciado, passando a engrossar as fileiras de desempregados do país.
De todas as suas lembranças a mais tocante, certamente, foi o alto preço que pagou pela tão almejada reforma – a garantia de um soldo proporcional à patente. Para consegui-la teve de “baixar no pavilhão de doentes mentais” do Hospital Central do Exército do Rio de Janeiro, pois, conforme dispunha a lei, esse benefício destinava-se àqueles que tivessem alguma limitação por motivos de saúde. Ele foi “obrigado a mentir” dissimulando desequilíbrio emocional, para obter o parecer favorável da Junta Médica. Permaneceu no HCE por longos quatro meses, na primeira internação, e mais 17 dias, na segunda. Enquanto isso, minha mãe, professora primária, se incumbia, em Minas Gerais, da responsabilidade de cuidar dos 11 filhos.
Apesar da morosidade, a reforma foi aprovada para muitos e a do meu pai, finalmente, publicada no Diário Oficial em novembro de 1976. Seja como for, não fosse a coragem para enfrentar “tamanha humilhação” meu pai – entre tantos outros pracinhas – sequer teria conquistado algum reconhecimento até a Constituição de 1988, quando, enfim, transcorrido quase meio século, foi assegurada uma pensão especial aos ex-combatentes.
Essas páginas, lamentáveis e vergonhosas, não se encontram registradas nos compêndios sobre a Segunda Guerra Mundial. Vieram à tona – não sem dor e amargura – através do desabafo de meu pai. Resistindo a todo esse descaso, mesmo assim ainda encontrou ânimo para tocar nessas “feridas” pacientemente – como é de seu temperamento (ou do que a vida lhe exigiu) -, como que reforçando o valor e a fortaleza de sua geração.
Em homenagem aos seus feitos na juventude, ainda estampo, com orgulho, na parede de minha casa, uma carta emoldurada, escrita por ele no dia 16 de maio de 1945, noticiando o término da guerra, enquanto aguardava com expectativa o embarque para o “Brasil amado, cobertos de louros da vitória que nos custou inúmeros sacrifícios”.
Durante todos esses anos, cada vez que eu relia esta carta, era tomada por um sentimento de indignação – na condição de filha e de historiadora – e me perguntava: quando os pracinhas teriam o reconhecimento pelos “sacrifícios” que enfrentaram em solo brasileiro? Parece que esse dia, finalmente, chegou…
Maria Leon Chaves de Resende
Artigo publicado na revista Nossa História – ano 2 – nº 15 – Janeiro de 2005