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Entrevista com o Dr. Orlando Gomes Berthier que serviu na Itália no quadro de médicos da FEB.

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Desembarque na Itália - Dr. Belthier no primeiro plano

“Creio que o nosso nordestino, em tempo de paz, é mais desnutrido que o italiano no tempo da guerra”. Assim falou o General de Brigada da reserva, Dr. Orlando Gomes Berthier, que integrou o quadro da FEB na Segunda Guerra Mundial.

Em sua residência, numa tranqüila Rua da Tijuca, o Dr. Berthier, atualmente (em 1979) com 67 anos, relatou ao repórter da revista “Vida Médica” os principais fatos da sua carreira de médico militar:

– Pertenço à turma de 1937 da antiga Faculdade Nacional de Medicina. Pode pôr aí que foi a melhor turma da Faculdade. Fiz meu estágio no Hospital São Francisco de Assis, na Primeira Enfermaria, do Prof. Agenor Porto, até 1939, quando ingressei no Exército. Após cursar a Escola de Saúde do Exército, fui servir em São Leopoldo (RS) e me tornei pediatra – o que sou até hoje – e montei meu primeiro consultório. Permaneci em São Leopoldo até 1941. Lá, em meu consultório, cobrava 30 mil réis cada consulta. As Visitas em casa eram 50 mil réis. E eu também era “credenciado” do IAPI. Depois fui servir na Usina Hidrelétrica de Bicas do Meio, em Itajubá (MG). A usina era de propriedade do Exército e fornecia energia às fábricas de armas de Itajubá e Piquete. Fiquei lá como clínico geral durante um ano. Era primeiro tenente quando voltei para o Rio, a fim de servir no antigo Grupo-Escola, em Deodoro, que foi incluído entre as unidades da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Em seguida, fui transferido para o 1º Batalhão de Saúde, em Valença, já para iniciar os preparativos com vistas à guerra.

O senhor encarou com o fato com naturalidade ou teve medo?

– Medo, eu não tive, mas fiquei preocupado. Eu havia casado em 1940 e tinha duas filhas pequenas. A mais velha, Luiza, atualmente é professora da Faculdade Nacional de Letras e está fazendo doutorado em Paris. A caçula, na época, era a Clélia, que hoje é médica do Hospital dos Servidores do Estado e do Instituto de Puericultura. Após a guerra nasceu a minha terceira filha, a Maria Emília, que é bióloga. Naquele tempo, eu tinha 30 anos e minha mulher, a Batistina, era professora municipal. Encarei a situação e me dediquei no sentido de desempenhar a missão com eficiência. Os preparativos duraram dois ou três meses em Valença e prosseguiram aqui na Vila Militar: medicina e cirurgia de urgência e adaptação ao material estadunidense. Não apenas material de penso (ataduras, esparadrapo, talas, etc.), equipamentos para administração de plasma seco, syrete de morfina, etc. Nossos instrutores eram colegas que haviam estagiado nos Estados Unidos, como o Dr. Álvaro Paes.

O senhor foi com o primeiro ou no segundo Escalão da FEB?

– Embarquei com o Segundo Escalão, com o Regimento Sampaio, em setembro de 1944, no navio-transporte “General Mann”. Embarque sigiloso, sem despedidas.
No fogo

– Nossa primeira missão, no “front”, foi em Monte Castelo. Tivemos muito trabalho no primeiro combate.

Qual é a reação de quem vê a guerra de perto pela primeira vez?

– É a reação de todo indivíduo que vai desempenhar uma missão debaixo de fogo: tensão nervosa. Mas nada impediu o cumprimento das nossas tarefas. Houve um episódio que nos chateou muito: no mesmo dia em que chegamos à frente de batalha, um de nossos companheiros, o José Igaski, descendente de japoneses, foi morto por estilhaços de granada. Nessa ocasião, ainda não estávamos acostumados com as baixas de guerra. Fizemos uns dois ataques a Monte Castelo sem sucesso e com razoável número de baixas. Passamos todo o inverno debaixo de neve e em atividades de patrulha, esperando a oportunidade para um novo ataque.

Na primavera voltamos à ofensiva – a terceira contra Monte Castelo – dessa vez com êxito. Iniciamos o ataque de madrugada e às 17h00min Monte Castelo era nosso. Tivemos muitas baixas. Médicos, enfermeiros e padioleiros trabalharam muito. Isso foi em fevereiro de 1945. Após a conquista de Monte Castelo, houve uma pausa. Entre os prisioneiros havia alguns feridos. Um cabo brasileiro, o Franz, servia de intérprete. Os feridos estavam realmente abatidos moralmente, sendo que alguns dos que não eram alemães – soldados de países dominados pelos nazistas, como poloneses e tchecos – mostravam certo alívio. Também entre os feridos havia italianos (militares e civis) que eram hostis aos alemães. Nós, brasileiros, mantivemos uma convivência ótima com a população civil italiana, que nos tratava magnificamente. Havia miséria e falta de comida entre os civis italianos, mas a falta de comida não era total. O que não havia eram variedade de pratos e o mesmo volume de alimentos. O italiano gosta de trabalhar e de comer. Acredito que o nosso nordestino, em tempo de paz, é muito mais desnutrido que o italiano no tempo da guerra.
Novos combates

– Depois da pausa, nossa tropa atacou Soprassasso, um monte que também estava sob domínio dos alemães. Em seguida, fomos para Lizano e lá ficamos nos preparando para o ataque a Montese. O combate de Montese durou cerca de 24 horas e sofremos diversas baixas. Passamos uma noite inteira recolhendo feridos. Nosso trabalho começou às 18h00min e terminou às 6h00min do dia seguinte. Na guerra, o primeiro socorro é feito pelo enfermeiro, que assinala a posição onde está o ferido e segue em frente com o pelotão para atender os outros. Em seguida, os padioleiros recolhiam os feridos, que eram transportados para o Pronto Socorro do batalhão, onde o médico atuava pela primeira vez. Os curativos eram melhorados, tomavam-se as primeiras medida para fazer a profilaxia da infecção, a administração de plasma, etc. Depois, em ambulância ou jipe, o ferido era transportado para o Posto de Saúde Divisionário e lá era feita uma revisão de todo o tratamento. Após isso, o ferido era transportado para a Cia. de Tratamento, já mais distante das linhas-de-frente, embora não muito. Nessa Companhia de Tratamento havia alguns leitos para hospitalização e se processava a triagem dos doentes e feridos. Os mais graves eram removidos para o Hospital de Campo – o “Field Hospital” – ou para o Hospital de Evacuação, esse já bem distante das linhas-de-frente. Os feridos e doentes sem gravidade, após medicados, retornavam imediatamente para suas unidades. Havia, também, o Hospital de Base, o de Convalescentes e de Especialização (para plásticas, aparelhos mecânicos, etc). Quer dizer, na guerra o médico não costuma ver o resultado final do tratamento.

Havia soldados embromadores, que fingiam estar com uma doença qualquer para sair da linha-de-frente?

– Não. Havia o neurosado, que não estava embromando, e sim, psicologicamente arrasado. Na guerra há um sentimento individual de masculinidade e, de acordo com a moral dominante, é vergonhoso fazer corpo mole. É muito difícil acontecer um caso desses.

Das situações dramáticas, quais as que mais lhe impressionaram?

– Os ferimentos causados por “minas”, principalmente em crianças da população civil. Os alemães quando batiam em retirada deixavam armadilhas até nas casas. Às vezes, uma criança ao pegar uma caixa, um brinquedo, abrir uma gaveta, lá estava uma bomba. A coisa mais dramática é a travessia de um campo “minado”. Quando a “mina” explode, o indivíduo fica com as pernas em frangalhos.

E o senhor tem algum caso pitoresco para contar?

– Tenho. Aquela história do soldado barbado, piolhento, não houve na Segunda Guerra Mundial. Tínhamos todos os recursos porque os estadunidenses funcionavam como uma verdadeira empresa. Havia até uma Seção de Recreação. Periodicamente, a tropa ia para cidades do interior, requisitava-se um hotel confortável e havia jogos, bailes, etc. Certa vez, encontramos um português numa cidade italiana cujo nome não me lembro, talvez fosse San Paolo D’Enza. O português, que tinha ido para a Itália para estudar música, mostrou sua carteira de identidade e nela estava escrito assim: “Estado Civil – unido ilegalmente com a Senhora Fulana de Tal”. Pois bem, esse português unido ilegalmente com a Senhora Fulana de Tal disse que gostava muito dos brasileiros e organizou uma festa em nossa homenagem. Demos muitos presentes a ele: roupas, sapatos, agasalho. Antes do baile, tivemos um jantar muito bem preparado. Depois de tudo terminado, quando íamos embora maravilhados com aquela homenagem do português, fomos notificados pelo dono – ou gerente – do local que deveríamos pagar a despesa. Enquanto gastamos nossas magras liras, o português já tinha sumido.

A paz

– Eu estava no norte da Itália quando a guerra acabou. Tivemos, é claro, uma grande alegria por saber que em breve voltaríamos ao Brasil, mas na realidade já estávamos sentindo, há algum tempo, que a guerra terminaria. Assisti a rendição da 148 Panzer, em Collechio, comandada pelo General Freter Picco. Enquanto eram discutidos os detalhes da rendição, foi providenciada a remoção dos alemães feridos. Nessa ocasião, encontramos o Capitão Airosa, hoje General, que havia sido preso pelos alemães e estava ferido.

Antes de voltar, dei uns passeios pela Itália. O que mais me impressionou foi Florença porque vi tudo àquilo que eu conhecia de leitura, aquelas coisas da época renascentista que me haviam incendiado a imaginação de jovem. Eu era um oficial que nutria gosto pelas artes. Naquele tempo, tínhamos o chamado Curso de Humanidades, estudava-se muito, lia-se muitos romances, não havia essas facilidades de hoje em dia, como o carro, a TV, coisas cômodas, mas que afastam as pessoas da leitura. Andava-se de bonde, tinha-se tempo para ler. Gostei imensamente da Itália e lá voltei duas vezes a passeio. Estive em Alessandria e revi a escola onde estivemos acantonados enquanto a tropa aguardava o regresso. Prestei uma homenagem aos nossos companheiros mortos, especialmente ao Soldado Cardoso, do Batalhão de Saúde, que lá se suicidou porque tinha cometido um ato de insubordinação e ele iria responder na Justiça.

Pão e cigarro

– Após a guerra terminada, nosso regresso ao Brasil foi feito num navio brasileiro, cujo nome não me lembro se era Pedro I ou II. Embarcamos em Nápoles. Já me senti no Brasil porque comi um pão brasileiro, do qual estava muito saudoso, e fumei um cigarro Liberty. No Recife, desembarcamos, houve muita festa, um povo muito alegre, procurei um telefone e liguei para a minha mãe. A ligação não era feita com facilidade: demorou quatro horas. Chegamos ao Rio num dia de sol, às 9 horas, e do Cais do Porto fomos para a Central pegar o trem que nos transportaria até Realengo. Só cheguei em minha casa, na Rua Visconde de Santa Isabel, às 17h00min. O almoço ainda estava à minha espera. Permaneci no Exército até 1966.

Impressões

– De uma maneira geral, a tropa brasileira teve um desempenho muito bom, tanto do ponto-de-vista da resistência física como psicológica. Naturalmente houve casos de neurose de guerra, mas em número normal. Do Corpo de Saúde, posso dizer que todos tiveram um comportamento magnífico, tanto o pessoal que já era da ativa como os convocados. Dentre estes, quero citar alguns que trabalharam comigo: os Drs. Samuel Soichet, que atualmente está no Monte Sinai Hospital, dos Estados Unidos; Antônio Fonseca, já falecido, e Paulo Jorge Whishart, imuno-hematologista e um dos precursores da troca de sangue no recém-nascido acometido de doença hemolítica. Todos nós, desse grupo, éramos dirigidos pelo Capitão-Médico Mário Vitor de Assis Pacheco, um apaixonado pela causa aliada.

Dos generais da FEB quem tinha mais prestígio?

– De um modo geral, o Zenóbio da Costa, que comandava a infantaria, era quem tinha maior prestígio. Ele se caracterizava pela coragem pessoal. O Cordeiro de Farias, homem muito inteligente, muito fino no trato, comandava a artilharia. Mascarenhas de Moraes, que era o comandante da FEB, um homem muito modesto, cumpridor dos seus deveres, muito “fechado”, mas muito bom homem, com uma missão das mais espinhosas, não só por ser o comandante da FEB, mas também por ser o homem de ligação com os estadunidenses do V Exército.

O senhor acredita na possibilidade da deflagração da Terceira Guerra Mundial?

– Não acredito, porque acho que já estamos nela. Praticamente, depois que terminou a Segunda Guerra Mundial, não houve paz no mundo. Apesar de tudo, eu ainda tive sorte porque tomei parte numa guerra onde havia um resquício de romantismo. Hoje, o ex-comandante do Vietnã é apontado pejorativamente porque participou de uma guerra cognominada de “A Guerra Suja”.

Ferido depois da guerra

No seu álbum de fotografias, o Dr. Orlando Gomes Berthier aparece de “short”, depois da guerra, mas ainda na Itália, e com um largo curativo. Ele explica:

– Fui ferido depois da guerra. Um caminhão caiu em cima de mim. Queriam me mandar de volta de avião, mas eu argumentei: “não morri na guerra, não quero morrer de acidente de avião.”

Sobre Andre Almeida

Ex-militar do exército, psicólogo e desenvolvedor na área de TI.Sou um entusiasta acerca da Segunda Guerra Mundial e criei o site em 2008, sob a expectativa de ilustrar que todo evento humano possui algo a ser refletido e aprendido.

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