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FEB – Dia-a-dia no Navio rumo ao Campo de Batalha

O Mundo é muito pequeno

*Por Joel Silveira

No fim da tarde de ontem, ainda ancorados diante do armazém, um tenente da infantaria surgiu com uma vitrola. Sambas, rumbas, tangos (particularmente tangos) e valsas entraram pela noite a dentro, a última noite carioca. Mais tarde, pelas vinte horas, um regional de pracinhas ganhou um dos compartimentos de cima, e os cavaquinhos e cuícas, dezenas deles, abafaram por completo os lamentos de Libertad Lamarque.

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Rumo à Italia, no 5º escalão da FEB, a bordo do General Meigs.

Adormeço precisamente quando um grupo de oficiais, no salão ao lado e defronte de um piano incansável, inicia um programa coral que possivelmente se estenderá por algumas horas, já que, excepcionalmente, não nos foi dito hoje quando devemos nos recolher ao compartimento e apagar as luzes. Perco inteiramente as esperanças de, às vinte e duas horas, aproveitar o salão vazio e bater na máquina estas minhas primeiras impressões. Escrevo, portanto, começo da manhã, depois que, com a largada do navio, deixo Copacabana, o Leblon e Ipanema perdidos na névoa grossa e cinzenta.

O alto-falante onipresente nos avisa,que poderemos ganhar o convés, para o espetáculo da saída da baia. Lá vai ficando o Pão de Açúcar, lá está o Cristo, altíssimo e enrolado em nuvens-pardas, e jamais esquecerei a última visão do Rio que me ficou nos olhos: a linha certa das casas do Leblon e a pedra da Gávea. O capitão, ao meu lado, derrama os olhos cismarentos na cidade que vai se afundando e me pergunta, num tom de confidência:
– Quando é que vamos ver isto de novo, heim, velho? Um cruzador estadunidense nos segue a bombordo, e a estibordo vai o destróier brasileiro. Atrás vem caças-minas e sobre nós voam aviões Vultee, da FAB, e um Blimp gordo e prateado. Há também destróieres brasileiros que de vez em quando se somem, para surgirem depois, ligeiros como lanchas a motor.

Com a saída do transporte, as ordens se multiplicam: ordens para os oficiais, ordens em inglês para a tripulação, ordens para os praças. Oficiais e praças devem se munir imediatamente dos seus salva-vidas, uma cobra estufada e caqui que teremos de trazer conosco, dia e noite, até o término da viagem. Os praças não devem ficar de tamanco no convés nem trazerem suas toalhas em volta do pescoço. E todos, oficiais, praças, até os comandantes, devem se preparar para o primeiro exercício de abandono do navio.

Às 10 horas da manhã o aviso se espalha pelo transporte, e no nosso camarote, em dois tempos, ficamos perfilados atrás do capitão-comandante do compartimento. Levamos o que a regra militar manda que levemos: bornal com biscoito, cantil com água fresca, óculos escuros para o sol. Chegamos até osso bote, o n. 9, mas desta vez ainda não desceremos ao mar; trata-se apenas de um exercício para que conheçamos, de uma vez por todas, o caminho do barco, e nos habituemos a alcançá-lo sem confusão nem tumulto. Metade do dia, um “Catalina” passa raspando sobre nós, e podemos distinguir perfeitamente um dos pilotos que nos acena. Os pracinhas estão lá em baixo, e aqui no salão os oficiais, umas cem vozes confundidas numa só, afogam o piano com a “Cobra está fumando”:

“Tira o saco
Bota o saco
Chegou a hora
da cobra fumar”

Descubro conhecidos a bordo: um oficial que foi meu companheiro de ginásio, em Sergipe, e um terceiro sargento, ex-colega do curso primário de D. Carlota, em Aracaju. “Isto significa que o mundo é muito pequeno”, me diz o capitão, vizinho do beliche 146, e passa a me contar uma série de histórias semelhantes. Uma delas se refere a um companheiro de armas, que ele deixou cabo no Pará, em Santarém, e foi encontrar primeiro-tenente no sertão de Mato Grosso. Outro velho conhecido é o primeiro-tenente da Moto-Mecanização, que, há dois anos atrás, numa reportagem movimentada e dolorida, me estraçalhou o corpo dentro de um “jipe” e de um tanque de 13 toneladas, lá para os lados da Vila Militar. Ele me bateu no ombro, no primeiro dia a bordo, e perguntou: “Como vão as dores ?” Indubitavelmente o mundo é muito pequeno.
Dois dias de navio e contacto permanente no salão dos oficiais, é o bastante para o incentivo e o extravasamento das confidências; começam a surgir as primeiras fotografias: meninos gorduchos e de olhos espantados – Chama-se Luiz. Fez um ano no dia 28. O nome dela é Clara. É a mais mocinha -, meninas de vestido branco, flagrantes de piqueniques na Tijuca e veraneios em São Lourenço. Todos deixaram pessoas queridas atrás: esposas, mães e namoradas.

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Navio General Meigs

Horas vagarosas e insípidas são estas que vão das 10, quando acordamos do segundo sono (o primeiro vai até as 6 horas, pois que as 7 têm início à primeira refeição até as 15, quando ainda faltam duas horas para o segundo e último rancho. Então o jeito é se enterrar de rijo no jogo dos palitinhos japoneses: o preto vale 35 pontos, o verde vale 10, o azul vale 5, o vermelho vale 4 e o amarelo vale 3.

Ás 16 horas, porém, a monotonia é quebrada com um acontecimento muito importante: abre-se a cantina do navio, servida por um boy estadunidense e onde é possível comprar uma boa caneta tinteiro por 15 cruzeiros, cigarro Lucky Strike a 1 cruzeiro o maço, papel e envelope por alguns centavos. Forma-se uma comprida fila diante do balcão pequeno e os oficiais saem carregados de pacotes de biscoito, uma porção de miudezas, sabonete, talco e um shampoo para cabelo, cujo perfume uniforme acaba por tomar conta do navio. Diante da caixa registradora do boy, é possível também trocar dinheiro brasileiro por estadunidense, já que o troco é todo feito a base de dólares e centavos. E à base de dólares e centavos passam a ser, das 16 em diante, os cálculos e as conversas orçamentárias de bordo, entre oficiais, sargentos e praças.

Uma novidade noturna: cinema a bordo, com um filme de John Carrol e Ana Neagle. O aspirante de Caçapava define uma das heroínas da película como magra e dentuça, mas o capitão de cavalaria previne: Daqui a 10 dias você vai achá-la uma gostosura.

Quando me recolho ao 107, para o sono que irá até as 7, sou informado pelo comandante do compartimento que devo adiantar meu relógio em duas horas. “É horário de guerra”. Isso quer dizer que amanhã, a primeira refeição será às 5 horas e que agora são 21 horas, como ensina meu relógio, mas precisamente 23 horas. Recolho-me aflito ao 146.

Sobre Andre Almeida

Ex-militar do exército, psicólogo e desenvolvedor na área de TI.Sou um entusiasta acerca da Segunda Guerra Mundial e criei o site em 2008, sob a expectativa de ilustrar que todo evento humano possui algo a ser refletido e aprendido.

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