Há oitenta anos, no dia 21 de fevereiro de 1945, o céu acima dos Apeninos italianos estava pesado, pesado de inverno e guerra. O frio cortava como faca, e a lama grudava nas botas dos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Monte Castelo, um nome que hoje é quase poético, era então uma fortaleza de pedra e morte, cravada no coração da Linha Gótica, onde os alemães da 232ª Divisão de Infantaria ficaram presos, entrincheirados, com patentes e granadas. Mas naquele dia, há exatos 80 anos, o Brasil fez a cobra fumar — e a montanha caiu.
Eu não estive lá, claro. Sou apenas um contador de histórias, um homem que junta pedaços de papel e memórias alheias. Mas folheio as páginas escritas pelo Major Antônio André, esse veterano que, em sua “Resenha O Brasil na II Guerra Mundial”, deixou um mapa vivo do que foi aquela campanha. E vejo, entre os rabiscos e as datas, o suor, o medo e a glória daqueles rapazes de vários cantos do Brasil, que atravessaram o mar para lutar numa guerra que não era deles — até que a fizeram sua.
Monte Castelo não caiu de primeira. Não foi um passeio. Antes do dia 21, houve tentativas frustradas, como fachadas no escuro. Em 24 de novembro de 1944, o 3º Batalhão do 6º Regimento de Infantaria (RI) levantou-se no morro sob fogo cerrado, mas foi empurrado de volta. No dia 25, a Task Force 45 americana tentou, com os brasileiros ao lado, e nada — os alemães seguraram firmes. Em 29 de novembro, a 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (DIE), sob o comando do General Mascarenhas de Moraes, insistiu de novo. Nada. “As balas tiveram pena de mim”, escreveu um pracinha anônima nas notas do Major André. Talvez as balas sim, mas o destino, esse não seja fácil de perdoar.
O que mudou no dia 21 de fevereiro? Talvez o cansaço de perder, talvez a raiva acumulada, ou quem sabe a estratégia afiada do General Mark Clark, chefe do V Exército Aliado, que decidiu jogar tudo numa expedição conjunta com a 10ª Divisão de Montanha americana. O plano era simples na teoria: os americanos tomariam Monte Belvedere, à esquerda, e os brasileiros avançariam sobre Castelo, à direita, num movimento de pinça. Mas guerra não é teoria, é gente de carne e osso correndo contra o chumbo.
O Cabo Ferraz, esse herói humilde, anotou no dia 20: “Nossa infantaria se prepara para atacar”. Ele estava com a 1ª Companhia de Transmissões, aqueles rapazes que esticavam fios telefônicos sob chuva de bombas, que faziam a rádio crepitar ordens enquanto o mundo explodia ao redor. No dia 21, enquanto infantaria do 1º RI, o Regimento Sampaio, subia o monte, Ferraz viu uma batalha de longe, mas sentiu cada passo. “Vitória no ataque a Monte Castelo”, ele escreveu, quase sem alarme, como quem anota o fim de um dia de trabalho. Mas que dia!
Os alemães tinham tudo a favor: altura, trincheiras, o inverno que congelava até os ossos. Mas os brasileiros tinham o que o Major André chamou de “criatividade dos pracinhas”. Era o Sargento Max Wolff, por exemplo, que no dia 14 de abril, em Montese, ganhava fama de herói, mas que em Castelo já mostrava o fogo nos olhos. Era o General Cordeiro de Farias, gritando ordens com voz de trovão. Eram os anônimos — o soldado que carregava o fuzil encharcado, o mensageiro que corria entre as explosões, o padioleiro que arrastava os feridos morro abaixo.

O ataque começou cedo, com a artilharia aliada rugindo contra as posições alemãs. Às 17h30, o Regimento Sampaio, com o 1º Batalhão na frente, fincou o pé no topo. Não foi bonito, não foi limpo. O Major André registra mortos e feridos, mas também a alegria no posto de comando: “Cumprida a missão do 1º Batalhão — alegria no PC da 1ª Cia.”. A cobra fumou, e o Brasil, pela primeira vez, cravou sua bandeira num campo de batalha europeia.
Oitenta anos depois, o que resta disso? Em Pistóia, na Itália, o Monumento Votivo Militar Brasileiro guarda os restos de 463 pracinhas que não retornaram. No Rio, a Avenida Presidente Vargas ainda ecoa os desfiles de 18 de julho de 1945, quando a FEB voltou ao Brasil, recebida por um povo em lágrimas. O Cabo Ferraz escreveu no dia 21 quase rindo: “A cobra está fumando lá pelo lado dos tedescos”. É o frio que rachava os lábios e as mãos dos soldados da 1ª Cia. de Transmissões, como conta o Major André em 23 de janeiro: “Todo o pessoal resfriado e com os lábios, orelhas e mãos rachados pelo frio”.
Hoje, 21 de fevereiro de 2025, penso nesses rapazes enquanto escrevo. Oitenta anos é muito tempo — quase ninguém que esteve lá ainda respira para contar. Mas o Major Antônio André, aos 87 anos em 2007, quando terminou sua resenha, deixou um testamento vivo. Ele queria que soubéssemos: aqueles homens não lutaram só por ordens, mas por algo maior, indefinível, que talvez fosse o orgulho de ser brasileiro num mundo em chamas.
Monte Castelo, 80 anos depois, não é só uma montanha na Itália. É um pedaço do Brasil que ficou lá, entre a neve e os ecos de tiros. É o pracinha sem nome que morreu na cota 958, é o rádio da 1ª Cia. que não calou sob o bombardeio, é uma vitória que, como disse o professor Israel Blajberg no prefácio do Major André, “provou a altura da epopéia”. Eu olho para o passado e vejo aqueles rostos cansados, aqueles olhos que viram o inferno e a glória. E sinto uma saudade estranha de um tempo que não vivi.