O Bell RP-63 “Pinball”: Como os EUA Treinaram seus Atiradores na Segunda Guerra

No Ecos da Segunda Guerra, já exploramos o fascinante programa de treinamento aéreo da Segunda Guerra Mundial com o Bell RP-63 “Pinball”, mas agora trazemos uma perspectiva renovada, com detalhes históricos aprofundados e relatos emocionantes de quem viveu essa experiência. Este avião, que serviu como alvo voador para treinar atiradores de bombardeiros, é uma das histórias mais curiosas da aviação militar. Vamos mergulhar na trajetória do RP-63, entender sua importância e ouvir as vozes dos pilotos que enfrentaram o desafio de serem alvos vivos no céu.

O Contexto Histórico: A Necessidade de Atiradores Competentes

Nos anos 1930, os Estados Unidos apostavam nos bombardeiros pesados, como o Boeing B-17 Flying Fortress e o Consolidated B-24 Liberator, para liderar suas campanhas aéreas. Esses aviões, projetados para missões de longo alcance, muitas vezes voavam sem escolta de caças, dependendo exclusivamente de seus atiradores para se defender de ataques inimigos. No entanto, até o início da guerra, o treinamento desses atiradores era rudimentar, limitado a práticas como tiro ao alvo em terra ou contra alvos rebocados. Isso não preparava os soldados para o caos de um combate aéreo real.

Em 1939, com a guerra já em curso na Europa, os americanos decidiram modernizar suas forças aéreas. Observadores enviados à Inglaterra, onde os britânicos enfrentavam combates intensos, trouxeram lições valiosas: era essencial treinar atiradores com alvos voadores e simulações realistas. Assim, em 1941, a Força Aérea Americana (AAF) abriu sua primeira escola de atiradores em Las Vegas, Nevada, aproveitando o clima seco e os vastos espaços abertos do deserto. Outras bases, como Harlingen e Laredo, no Texas, e Kingman, no Arizona, logo se juntaram ao esforço.

Com o ataque a Pearl Harbor em dezembro de 1941, a urgência aumentou. Las Vegas passou a formar 320 atiradores por semana, e até o fim de 1942, mais de 10 mil haviam sido treinados, com 85% deles certificados. Harlingen, por sua vez, formou 45 mil atiradores entre 1942 e 1945, mais da metade do total da AAF. Laredo, a maior escola, foi responsável por 25% dos atiradores, enquanto 90% dos profissionais passaram por essas bases antes de ir para o front.

O Surgimento do RP-63 “Pinball”: Um Alvo Voador Inovador

Apesar do avanço nas escolas, ainda faltava realismo no treinamento. Atirar em alvos fixos ou rebocados não simulava a velocidade e a imprevisibilidade de um caça inimigo. Foi então que, em 1942, o Major Cameron Fairchild, da AAF, propôs uma ideia ousada: usar aviões reais como alvos voadores. Para isso, ele colaborou com a Duke University, a University of Michigan e a Bakelite Corporation para desenvolver balas frágeis, feitas de chumbo e baquelite, que se desintegravam ao atingir o alvo, reduzindo o risco de danos graves.

O avião escolhido para essa missão foi o Bell P-63 Kingcobra, redesignado como RP-63. Diferente do P-51 Mustang, que era essencial para o combate, o P-63 não era usado em larga escala pela AAF, sendo mais exportado para a União Soviética via Lend-Lease. Isso o tornava disponível para o programa. O RP-63 foi modificado com mais de uma tonelada de blindagem, incluindo vidro blindado de uma polegada de espessura e sensores que registravam os acertos. Uma luz vermelha na hélice piscava a cada impacto, dando ao avião o apelido de “Pinball”, como um fliperama voador. Para aumentar sua visibilidade, ele era pintado em tons de laranja brilhante ou amarelo.

A partir de 1944, o programa, conhecido como Operação Pinball, entrou em ação. Cerca de 300 RP-63 foram produzidos, operando em bases como Laredo, Las Vegas e Tyndall, na Flórida. Cada bombardeiro B-17 em treinamento levava até 12 atiradores, cada um com 2 mil balas frágeis para disparar contra o RP-63, que simulava ataques de caças inimigos.

Relatos e Memórias: A Experiência dos Pilotos

Os pilotos do RP-63 enfrentavam uma missão psicológica e fisicamente desafiadora. Horace Ashenfelter, que pilotou o “Pinball” em Tyndall em 1945, descreveu suas experiências em uma entrevista para a Air & Space Magazine (2014). Ele contava que voava duas a três missões por dia, cada uma durando cerca de uma hora e meia. “O RP-63 tinha combustível para duas horas, mas, depois de atacar cada bombardeiro, você já estava sem gasolina”, relatou. Ashenfelter, que mais tarde se tornou campeão olímpico de corrida com obstáculos, dizia que, apesar do risco, gostava do trabalho.

Outro piloto, Merlyn Franck, que voou em Laredo, lembrou em um relato publicado no livro Operation Pinball (1990), de Ivan Hickman, a importância de manter a velocidade durante o pouso. “Um dos nossos pilotos ignorou isso e deixou o RP-63 muito lento na aproximação final. Ele caiu com tanta força que as pernas do trem de pouso atravessaram as asas”, contou. Esses incidentes eram comuns, especialmente porque o motor Allison V-1710, que equipava o RP-63, superaquecia facilmente. Se uma bala frágil entrava nos dutos de ar nas raízes das asas, o sistema de refrigeração era danificado, forçando o piloto a escolher entre um pouso de emergência ou abandonar o avião.

Harry J. Byer, um atirador que treinou contra o RP-63, também compartilhou suas memórias na mesma revista. Ele descreveu as passagens do RP-63: “Eles vinham em alta velocidade de lado, e, nos últimos 200 metros, os instrutores mandavam parar de atirar. Então, o piloto descia, subia do outro lado e fazia outra passagem. Depois, eles nos avisavam pelo rádio: ‘Vocês acertaram seis, dez ou três tiros’”. Byer destacou como o treinamento era realista, mas também arriscado para os pilotos do “Pinball”.

Desafios e Limitações do Programa

Apesar de inovador, o programa enfrentou problemas. As balas de baquelite frequentemente enroscavam nas metralhadoras, e os sensores do RP-63 nem sempre eram precisos, registrando acertos incorretos. O motor Allison, vulnerável ao superaquecimento, era um ponto fraco, especialmente no calor do Texas e do Arizona. Além disso, a blindagem extra tornava o avião mais pesado, afetando sua performance.

Entre 1944 e 1945, os RP-63 realizaram 11 mil voos e consumiram 13 milhões de balas frágeis. Embora muitos aviões tenham sofrido danos, como os listados em registros históricos (por exemplo, o RP-63A-12 de número de série 42-68903, danificado em um teste em 08/11/1944), não houve mortes. O programa foi considerado bem-sucedido, mas sua relevância diminuiu com o fim da guerra em 1945. A introdução de sistemas de controle de tiro centralizados no B-29 Superfortress e radares de pontaria no B-36 Peacemaker tornaram o treinamento com alvos voadores obsoleto. Até 1947, a maioria dos RP-63 foi aposentada.

Tabela: Lista de RP-63 Atingidos por Controles

TipoNúmero de SérieDataMissãoPilotoBase
RP-63A-1242-6890308/11/44Teste [1]R. B. GorrillBell Aircraft Corporation
RP-63A-1242-6894510/03/45Treinamento2º Ten. L. L. Sales3036ª BU, Yuma, AZ
RP-63C-243-1100316/03/45Transferência2º Ten. A. Teztlaff3021ª BU, Las Vegas, NV
RP-63A-1242-6891214/05/45Treinamento2º Ten. E. B. Anderson2126ª BU, Laredo, TX
RP-63C-243-1100917/05/45TesteCapt. K. E. Padgett556ª BU, Love Field, TX
RP-63C-243-1066622/05/45Treinamento2º Ten. M. K. Hamilton3022ª BU, Indian Springs, NV
RP-63A-1242-6966225/05/45Treinamento2º Ten. C. A. Brown2119ª BU, Naples, FL
RP-63C-243-1113227/05/45Transferência2º Ten. R. A. Barmos (t)553ª BU, Romulus, MI
RP-63C-243-1111107/06/45Treinamento2º Ten. R. Rolling Jr.2135ª BU, Tyndall, FL
RP-63C-243-1105218/07/45Treinamento2º Ten. M. H. Atkinson2126ª BU, Laredo, TX
RP-63A-1242-6898725/07/45Teste2º Ten. K. Jarmolow2119ª BU, Naples, FL
RP-63C-243-1112804/08/45TreinamentoF/O C. C. Williamson2119ª BU, Naples, FL
RP-63A-1142-6895408/08/45Treinamento2º Ten. J. R. Mc Coy2126ª BU, Laredo, TX
RP-63A-1242-6966405/08/45RotinaF/O M. L. Noel2119ª BU, Naples, FL
RP-63C-243-1101617/08/45Treinamento1º Ten. D. O. Hurtubise2124ª BU, Harlingen, TX

Nota:
[1] Teste em voo, avião não utilizado em combate pela AAF (Força Aérea Americana).


Explicações:

  • Tipo: Refere-se ao modelo do avião RP-63 (A-11, A-12 ou C-2).
  • Número de Série: Identificação única de cada avião.
  • Data: Quando o incidente aconteceu, no formato dia/mês/ano.
  • Missão: O tipo de voo que o avião estava fazendo (teste, treinamento, transferência ou rotina).
  • Piloto: Nome e patente do piloto (2º Ten. = Segundo Tenente, F/O = Oficial de Voo, 1º Ten. = Primeiro Tenente, Capt. = Capitão).
  • Base: Local onde o avião estava baseado, com a unidade (BU = Base Unit, ou Unidade de Base) e a cidade/estado nos EUA.

Veja Também: Operação Pinball – Treinamento de tiro com alvo tripulado

Sobre Ricardo Lavecchia

Trabalho como vendedor, mas tenho como hobby desenhar e pesquisar sobre a Segunda Guerra Mundial.

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