Em 1943, Getúlio Vargas sabia que se nós participássemos da Segunda Guerra Mundial, as chances do Brasil ter um papel de destaque no mundo pós-guerra seriam maiores. Nosso presidente sabia também que esse fato coroaria uma possível ascensão do país ao grau de potência regional, fator presente em seu plano de modernização econômica.
A formação de um corpo especial de combate (nos moldes americanos) para ser enviado a Europa, proporcionaria ao Exército uma nova logística na forma de equipamentos modernos, armas, munições, uniformes, alimentação e botas, fato que consolidaria o apoio das forças armadas ao governo que , naquele momento, estava frágil.
Para boa parte da população brasileira, o envio de soldados para o teatro de operações na Europa significava o troco bem dado aos ataques alemães aos nossos navios, ou seja, um ato patriótico.
O Brasil já havia fornecido as bases militares em território nacional, cooperava economicamente com o esforço de guerra e nossa Marinha já lutava ao lado da US Navy na caça de submarinos no Atlântico Sul.
Portanto, havia motivos de sobra para o governo organizar e enviar rapidamente a FEB além mar. Em agosto de 1943, foi formada enfim a Divisão de Infantaria Expedicionária, que conteria três regimentos de infantaria, um esquadrão de cavalaria mecanizada, um batalhão de engenharia e forças auxiliares.
A mobilização das unidades foi, sem dúvida, a operação mais difícil e delicada que o Exército teve que enfrentar naquele momento: que soldado o Brasil teria para oferecer para uma guerra moderna? Deu-se início a convocação em quase todo o território nacional em uma grande e rigorosa operação de seleção e treinamento de homens. O problema mais complicado dessa intrincada operação foi, inegavelmente, o preenchimento das inúmeras funções especializadas existentes nos novos quadros de organização de tropa (o sistema americano), pois na Reserva (oficiais e recrutas fora da ativa) não havia elementos em número e em condições de preenchê-las. Nesse caso, operários, lavradores, estudantes, comerciários e tantos outros jovens, com idade até 26 anos, compuseram a maior parte da maior força armada brasileira enviada para combater fora do continente em todos os tempos. Era preciso transformar milhares de civis em militares da noite para o dia.
Tal transformação deveria obedecer às seguintes normas do US Army: avaliação da capacidade intelectual, feita por médicos psiquiatras e por psicólogos; observação do estado de saúde física e mental, nas unidades de treinamento dos que tenham sido julgados aptos, durante o prazo de três meses; os homens seriam classificados em quatro grupos:
- Apto para o serviço do Exército, categoria especial (E).
- Apto para o serviço do Exército, categoria normal (N).
- Incapaz temporariamente para o serviço do Exército.
- Incapaz definitivamente para o serviço do Exército.
Os aptos, categoria E, seriam incorporados à 1ª DIE nas funções que exigissem maior dispêndios de energia. Os oficiais de categoria N, não seriam incluídos na FEB. As praças de categoria N. poderiam ser aproveitadas em determinadas funções. Entretanto, o quadro geral das condições físicas e intelectuais da maioria do povo brasileiro naquela época (fruto dos séculos de injustiça e desigualdade sociais que a modernização Varguista não conseguia neutralizar) não atenderia a rigorosa exigência prevista pelo modelo americano.
Em 1943, o grosso da população brasileira, consistia de pobres, em larga extensão, analfabetos. A maior parte deles havia crescido com uma dieta simples de arroz com feijão, repetida indefinidas vezes, e estava acostumado a poucas necessidades modernas, Muitos deles poderiam marchar descalços, se necessário, do jeito que sempre andaram na maior parte de suas vidas. Aliás, vários praças brasileiros só foram conhecer um calçado de boa qualidade usando as botas de combate na Itália. A pouca instrução e falta de mentalidade e treinamento para a mecânica dificultou a incorporação dos carros de combate.
Nesse contexto dramático de falta de adequação do perfil geral do cidadão brasileiro com as exigências militares de uma guerra moderna, levou o processo de seleção a fazer vistas grossas sob o perigo de não haver homens suficientes para a montagem dos três regimentos de infantaria expedicionária. Como resultado, milhares de analfabetos incorporam-se às fileiras da FEB. Segundo as normas militares modernas, o combatente não pode ser um iletrado, pois já não é mais um simples autômato, dentro da rigidez das formações (à moda francesa), mas uma pequena peça especializada, dinâmica, pensante, capaz de conduzir-se no combate, a despeito da ausência ou perda dos seus chefes. Não raras vezes, terá de transformar-se num pequeno líder dos que o cercam nos instantes de crise. Apesar dessa ressalva, não consta dos relatórios de combate americanos ou da FEB que algum combatente tenha deixado de cumprir suas determinações colocando a vida de pessoas em risco pelo simples fato de não ser instruído escolarmente. As intensas e variadas emoções da luta e as bruscas e violentas mudanças de atitude exigem dos combatentes, além de muito vigor físico, perfeito equilíbrio emocional, do contrário tornam-se presa fácil. Nas montanhas italianas a causa da morte de brasileiros em batalha não se vinculou a desqualificação emocional do combatente, mas sim a causas de estratégia. Apesar de tudo o que as normas americanas determinavam, o cidadão brasileiro, com todas as suas dificuldades intelectuais, se transformou em um combatente moderno em um curto espaço de tempo após ter sido um simples cidadão rural ou urbano.
Posteriormente, as categorias E e N foram unificadas devido o alto índice de incapazes para o serviço de guerra, isso determinado pelo processo de seleção. Este fato levou a necessidade de elevar indivíduos de características apenas normais à categoria especial, na qual as exigências eram muito mais severas. Nos casos em que não houvesse elementos para o preenchimento dessas exigências especiais ou quando os reservistas convocados não satisfizessem inteiramente as novas funções, recomendou-se que recrutas fossem matriculados em escolas de instrução. Vale lembrar que os primeiros momentos dos brasileiros na Itália foram consumidos apenas em exercícios físicos e na separação dos grupos de treinamento. Do civil pobre, inculto ou analfabeto construiu-se em pouco tempo um combatente moderno apto a enfrentar os complexos problemas de uma geurra, ou seja, ‘homens de fibra’.
Poderíamos continuar esse assunto ainda mais um pouco lembrando que a maior parte dos soldados brasileiros já de saída eram fisicamente deficientes, de acordo com os padrões americanos, e que doenças venéreas ocorriam em alto grau entre eles. Na dieta normal do brasileiro comum havia inúmeras deficiências e os cuidados com os dentes foram muito negligenciados. A questão dentária preocupou bastante nessa ocasião, pois um grande número de inspecionados apresentou-se com a ‘superfície mastigatória’ incompleta e estragada. Era uma exigência que o convocado tivesse pelo menos 26 dentes na boca, o que inviabilizou a incorporação de milhares de homens. Um bom exemplo desse fato é o caso do estado do Pará, que teve 800 convocados, dos quais apenas 150 puderam ser aproveitados. Nesse contexto, sérios problemas técnicos tiveram de ser enfrentados, tais como o da imunização da tropa e o dentário. Porém, nos campos da Itália, os soldados cabos e sargentos da FEB apesar desses inúmeros obstáculos natureza social e da saúde, muitos dos franzinos e débeis infantes agigantaram-se na luta, exatamente por terem um espírito forte que os impeliu para frente: em um primeiro momento um patriotismo e depois o cuidar de si, o cuidar do outro, a irmandade que só nasce nesses momentos de estresse nos quais um põe sua vida nas mãos do outro.
Nossos comandantes militares sentiram toda essa imensa dificuldade de organizar nossas tropas, além do mais por causa dos padrões militares franceses adotados pelo Exército, inadequados para uma guerra moderna. Mesmo assim, o comando militar brasileiro esperava superar todos esses obstáculos e lutar ao lado dos americanos.
Treinados desde o início da década de 20 por uma missão francesa, as técnicas e os princípios adotados pelos militares brasileiros estavam totalmente ultrapassados. Era preciso recomeçar o treinamento da estaca zero, fornecendo instrução atualizada a todas as unidades.
Para muitos oficiais de carreira, tal situação representou um desrespeito à formação militar, há muito tempo fornecida na Academia Militar do Realengo. Nesse contexto, a introdução do sistema americano aconteceu impositivamente garantindo, assim, a modernização da capacidade de combate da tropa brasileira.
As diferenças entre o US Army e o Exército brasileiro não eram meramente de estratégia e técnica militar, havendo distinções na alimentação, transporte, comunicações e hierarquia militar, entre outras, que teriam de ser superadas. Para o combate na Itália, por exemplo, era preciso abandonar os ataques frontais de baionetas e aprender as manobras de pequenos grupos (pelotões) e a mecanização. Era preciso abandonar o feijão e o jabá nacionais para uma comida da maior valor calórico e nutricional como peru, frutas e chocolates servidos pelo US Army a seus soldados. Tudo isso foi feito em pouco tempo. A FEB, uma fez inteiramente equipada, treinada e alimentada, era muito mais potente que todo o Exército brasileiro. O soldado febiano em combate na Itália trazia já em sua vestimenta as marcas de toda a sua linhagem especial: Capacete de aço M1, jaqueta de botas de combate americanas cinto e guarnições do Fuzil Spreengfield e sub-metralhadora Thompson, tudo nunca antes visto em solo brasileiro.
Como foi exposto, a FEB foi uma tropa que foi formada por meio da superação de inúmeros obstáculos através da transformação de homens comuns com deficiências de várias ordens em combatentes modernos capazes de enfrentar o experiente e bem equipado exército alemão. A falta de experiência em qualquer conflito maior fora do país e o treinamento primeiramente destinado a reprimir revoluções e defender as próprias fronteiras foi substituída por habilidades de combate a altura dos melhores exércitos do mundo.
Vimos que a transformação imposta a homens do povo para que os mesmos se superassem nos campo de batalha fez parte plano de modernização econômica imposta pelo governo Vargas. Descobertos nos rincões do país, apesar de não estarem com o condicionamento físico e emocional exigidos para a sobrevivência em um combate moderno, nossos cidadãos precisavam arriscar suas vidas para que as chances do Brasil ter um papel de destaque no mundo pós-guerra fossem maiores. Nosso presidente, na época, media a ascensão do país ao grau de potência regional com envio de brasileiros a condições dramáticas em termos climáticos, físicos e emocionais. Boa parte dos habitantes brasileiros desde a década de quarenta não teria capacidade de suportar os tiros de metralhadora ou as granadas em prol de um modelo de desenvolvimento proposto por seu governo. Os febianos infelizmente viveram isso e no pós-guerra foram esquecidos em seu exemplo de conduta e de superação frente às dificuldades próprias da condição social brasileira. Na Itália, colocaram suas vidas em risco, morreram e sobreviveram para nos contar as histórias de defesa de um país. Agora os tempos são outros e, penso, isso não seria mais possível.
Alguns historiadores tentaram difundir uma interpretação da FEB como se essa fosse um repositório de pobres, desmazelados, como unidade correcional, mal treinada e pouco influente na guerra. Atualmente a imagem dos veteranos jogados a própria sorte colabora no fortalecimento dessa impressão nos mais jovens, entretanto, há algumas décadas estavam todos eles lá na Itália, também jovens e prontos para matarem e morrerem por um país que pouco lhes preparou para isso. Certa vez, um general brasileiro disse que a guerra moderna exigia o melhor e o mais representativo no seio da Nação e não analfabetos, doentes…ele tinha razão. A FEB foi feita disso tudo e também de homens de aço!
Autor: Marcelo Sampaio – Professor de Sociologia e filosofia – Marília/SP