FEB – O Cotidiano dos Pracinhas – Parte I

Para os pracinhas brasileiros, oriundos de lugares tão distantes e diferentes como o Rio Grande do Sul, o Ceará ou a pequena Cachoeiro do Itapemirim, a ida para a Itália, para lutar numa guerra que a maioria mal compreendia, equivalia a uma ida à lua, pois a imensa maioria não conhecia nada além da região em que haviam nascido.

Podemos compreender o estranhamento dos pracinhas se lembrarmos que, no final da década de 1940, 70% da população brasileira ainda vivia no campo. Desta forma, não deixa de ser surpreendente o comportamento do pracinha, trancafiado nos imensos navios de transporte, empilhado nos beliches como artigos em uma prateleira, suando em bicas sob as luzes vermelhas dos alojamentos do General Mann, e sendo elogiado pelos oficiais navais estadunidenses por sua higiene e bom comportamento. A viagem era extremamente difícil e desconfortável, como mostra este trecho da crônica Viagem do Pracinha:

O pracinha está num compartimento onde há muitos pracinhas. Há um pracinha no beliche de lona embaixo do seu e há 2 pracinhas nos 2s beliches acima do seu. Dentro do compartimento, a bombordo, a boreste, a ré, avante, por baixo e por cima, há mais 379 pracinhas empilhados, todos seminus. Abaixo daquele, há outro compartimento, e abaixo desse outro há ainda outro, e acima e ao lado há outros compartimentos, todos absolutamente cheios de pracinhas do chão ao teto. Mas o pracinha mal pode ver dois ou três companheiros. As luzes foram apagadas, e só restam algumas baças lâmpadas vermelhas.

Sua-se, meus senhores, sua-se aos litros, sua-se aos potes, sua-se a cântaros neste navio trancado. Há ventiladores, há sistemas de renovação do ar, e tudo isso é muito interessante. Mas o pracinha sua. Seu corpo está pegajoso, porque ele só conseguiu tomar banho de água salgada, e o sal do suor se mistura com o sal da água do banho, e o pracinha não pode dormir. Na escuridão de raras manchas rubras, ele fica pensando na vida – e, ocasionalmente, na morte. Diante deste quadro, os compartimentos mais procurados dos navios eram os banheiros, fosse para um banho que aliviasse o calor ou para aqueles que, tomados pelo enjôo, ‘restituíam até a alma’. E como essa pode encontrar dezenas de descrições que dão conta não só dos desconfortos do dia-a-dia como da dificuldade de adaptação de ser transportado em um navio de bandeira estrangeira. Mas o pracinha evidentemente acabou por adaptarem-se, usando seu tempo para ler os manuais técnicos de seu novo equipamento, ou, mais comumente, tentar aprender algo do inglês e do italiano, ou simplesmente jogar cartas, damas ou xadrez.

Essa era a rotina dos navios de transporte, até o desembarque na Itália, geralmente no porto de Nápoles. A partir daí, os soldados eram transportados até a área em que ficariam aquartelados até a entrada em ação. Este transporte geralmente se fazia por mar, nos LCIs – Landing Craft Infantry -, barcos de desembarque de tropas com capacidade para 200 homens. Após a chegada o seu destino, o que mais impressionou os pracinhas foi a fartura dos suprimentos fornecidos pelos estadunidenses. Desde a abundância de gasolina para os veículos, até a grande quantidade de rações e cigarros, que os soldados usavam como moeda de troca com a população italiana.

Roupa e comida não faltam. Rações K, rações C; monótonas mas substanciais; e às vezes, como hoje mesmo – 31/10/1944 -, o milagre supremo do tutu, farofa, depois da canja, uma verdadeira canja de galinha – e carne de vaca, honesta carne de vaca legítima, sem nenhuma desidratação. Sim, esta é a guerra da fartura: temos cigarros bastantes para atender a milhares de bambinos filantes que pedem para o babo ou para o nono. Diante desta população miserável somos todos milionários.

Só por curiosidade, vejamos em que consistiam as rações K e C. A ração K era um kit padronizado para ser portada por patrulhas ou por qualquer tropa que fosse para terreno onde seria perigoso preparar a ração normal, a B ou a C. A ração padrão era a B, substituída pela C em caso de dificuldades de preparação, pois a C podia ser consumida fria.

São 3 bonitas caixinhas – a ração K – muitíssimo bem protegidas por papéis especiais – um para o café da manhã, outra para o almoço, outra para o jantar. Lá dentro, engenhosamente arrumado e protegido por celofane, papel, lata ou alumínio, há um mundo de coisas.

O café da manhã, por exemplo, contava com seguinte:

· 2 biscoitos (um deles duríssimo),

· 1 latinha de carne com ovos,

· 1 pedaço de doce de fruta duro,

· 5 gramas de café,

· Açúcar,

· 4 cigarros

· 1 caixinha de chicles.

O almoço tinha:

· 2 biscoitos – um deles duríssimo,

· Açúcar

· 4 cigarros – com fósforos,

· 1 latinha de queijo,

· 1 conserva,

· Suco de limão em pó.

O jantar trazia:

· 1 latinha de carne;

· 1 sopa em pó como novidades.

Essas caixinhas constituem, a princípio, uma surpresa e quase um divertimento para o soldado. Mas quando ele deve se alimentar só com aquilo – fica invariavelmente triste.

Darei uma idéia da ração C, que variava bastante, para que só viesse o mesmo cardápio 3 vezes por mês.
Assim, um café da manhã incluía:

· Suco de tomate (freqüentemente substituído por outro suco de frutas),

· Um mingau,

· Leite,

· Presunto,

· Pão torrado,

· Pastelão doce,

· Manteiga e

· Café.

Um almoço:

· Salsichas,

· Purê de batatas,

· Milho,

· Pão,

· Manteiga.

Um jantar:

· Carne assada com vagens,

· Espinafre,

· Queijo,

· Compota de pêra ou pêssegos,

· Biscoitos,

· Manteiga,

· Suco de frutas,

· Chá. (Na prática, havia sempre café, no lugar do chá, assim como pão e manteiga em abundância).

Em resumo: tanto quanto possível, nossos homens se alimentavam bem – e a não ser por dificuldades locais e momentâneas de transporte, que sempre acontecem na guerra, a comida era abundante, graças aos enormes estoques de gêneros dos americanos perto de Livorno e ao suplemento brasileiro.

Como pudemos observar, a quantidade de comida não era um problema, mesmo na linha de frente, onde geralmente chegava com abundância e regularidade.

Entretanto, havia os habituais problemas com os ingredientes e o sabor, rejeitado pela maioria dos pracinhas, e a falta de alguns elementos, como o arroz, o feijão e a farinha, que deixava a maioria dos homens insatisfeitos. Estes problemas levaram à adoção de um sistema de alimentação misto, que implicava numa logística bem mais complexa que o usual, com um maior número de cozinhas, maior necessidade de transporte e aumento do tempo de preparação, que evidentemente foi alvo de críticas por parte dos estadunidenses.

Mas no geral, conforme afirma o correspondente Rubem Braga,

“Sempre houve muitas reclamações da tropa – mas a verdade é que, com a espera para o regresso e a viagem, a maior parte dos soldados engordou”.

Continua…FEB – O Cotidiano dos Pracinhas – Parte II

Sobre Andre Almeida

Ex-militar do exército, psicólogo e desenvolvedor na área de TI.Sou um entusiasta acerca da Segunda Guerra Mundial e criei o site em 2008, sob a expectativa de ilustrar que todo evento humano possui algo a ser refletido e aprendido.

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